22 de março de 2019

Trajetória [ou Modos de entrega]



Foi estranho o automático jeito que meu corpo reagiu aos primeiros acordes daquele som maroto e sombrio que vinha de lá. Era um reggae de facas, entende? Daquele que vinha com pausas deslocadas no tempo e que assim mesmo não tinha vergonha de parecer um samba. Os pés já estavam quentes em poucos segundos de movimento e o short não se segurava em pé, mostrando o elástico da cueca como pavão procurando sol. E era só um displicente dia sem a malícia dos versos de desejo. 

Com o outro braço apertou o botão - que nunca sabia se funcionara - na coluna do meio do ônibus ali nas mediações do monumento ao doutor nãoseiquem importante. Deu certo! Conseguiu porta aberta sem tropeços. Desceu quase dançando ainda sem titubear com aquele pacote cinza embalado sem esmero, pois foi o que deu pra fazer a contento pela pressa de fazer, de ir. 

A devoção pela malemolência da sonoridade o deixava sem critérios para o caminhar entre pessoas desconhecidas com rebolar de quadril espaçado por entre um roteiro. Também estava sem vergonha de oferecer (-se), pois era o que estava a fazer. O ritmo pouco veloz o inclinava pra frente mesmo sem peso nos ombros. Mais sinceramente, me desobrigava a lembrar do desvio que já causava dores verticais. Mesmo notório e bem possível que me declinasse qualquer interesse de cuidado alheio advindo do desejo. Mexer a pélvis no meio da rua passava distante desse pensamento, até chegar no portão. 

Cancela aberta por reconhecimento fácil do senhor que já tinha visto aquela cena anteriormente. Ele, que com seu quase sotaque espanhol da Bahia, solfejou um “boa noite” entre aquele riso displicente no meio da boca. Acho que ele me perguntou se eu tava feliz, mas eu ainda tava nervoso por chegar ali de novo e com vergonha por cantar junto com a cantora que ressoava na caixa dos peitos aquelas ondas de fo(m)es de ouvido. Eu ri como se entendesse, mas prestando atenção, perguntando-lhe sobre a malícia da noite, sobre como estava a família e quando chegaria de vez as chuvas de outono. Ele também riu, deve ter pensado: que simpatia misteriosa. Pegou o pacote dessa vez e pra fechar aquele ciclo fez a questão retórica: 201, né? 


Feito! O ponto era a mais ou menos 180 metros. O silêncio era inofensivo e valente. E a música era Coração Rastafári.