20 de dezembro de 2020

Carta à intermitência da solidão


 

Boa noite, 

Antes de tudo queria salientar que tentei escrever essas palavras ao tempo, mas confesso que seu endereço já não me é sabido. É bem verdade que a dimensão do local do tempo tem sido uma grande incógnita por aqui. Nunca fui muito sabedor, também é um fato, por isso mesmo faz-se necessário predizer a minha ignorância em localizar o tempo. A ele caberia as tais inquietudes aqui expostas. Não por reclamar sua atenção, mas por lhe entender destinatário passível de acolher com parcimônia e sensatez.

Se não ao tempo, encaminho essa breve arenga à solidão. Mais ainda, à sua intermitência recorrente. É que como vilã, me parece cabível lhe alertar que sua perenidade é ansiada. Por mais longinqua que seja a morosa assiduidade da solitude, alcançá-la parece destino que confere destreza de conforto. Há tempos que a ausência aqui promove vazios, mas saber-se impossibilitado de mobilizar no outro qualquer ranhura que provocasse reciprocidade no desejo já deveria ser um aprendizado, visto que o reflexo é implacável. 

Performar o não querer é possível?

Importante salientar que ser só não é tal vontade, mas entendimento de condição com austeridade. Vale menos o cansaço da alma causado pela saudade indevida que o contentamento em aceitar a inabilidade de apaixonar outrem. Ressalto que qualquer aspecto sorumbático se dá não pela ausência do interesse de outrem (como dito, compreensível), mas principalmente pela reincidência do sentimento de abandono.

Devo confessar a ti que há um esforço para direcionar a fluidez de passos continuados para desafios complexos como a vicissitude da coerência no cotidiano ou mesmo a práxis da contingência do trivial, mas, como relatado, o tempo ainda se arrasta para um tal lugar desconhecido que derrama repetições dos sentidos.

Fecho esse desagravo a ti sem desejo de resposta, mas certo de sua acolhida em veleidade. 

Atenciosamente.



    

22 de março de 2019

Trajetória [ou Modos de entrega]



Foi estranho o automático jeito que meu corpo reagiu aos primeiros acordes daquele som maroto e sombrio que vinha de lá. Era um reggae de facas, entende? Daquele que vinha com pausas deslocadas no tempo e que assim mesmo não tinha vergonha de parecer um samba. Os pés já estavam quentes em poucos segundos de movimento e o short não se segurava em pé, mostrando o elástico da cueca como pavão procurando sol. E era só um displicente dia sem a malícia dos versos de desejo. 

Com o outro braço apertou o botão - que nunca sabia se funcionara - na coluna do meio do ônibus ali nas mediações do monumento ao doutor nãoseiquem importante. Deu certo! Conseguiu porta aberta sem tropeços. Desceu quase dançando ainda sem titubear com aquele pacote cinza embalado sem esmero, pois foi o que deu pra fazer a contento pela pressa de fazer, de ir. 

A devoção pela malemolência da sonoridade o deixava sem critérios para o caminhar entre pessoas desconhecidas com rebolar de quadril espaçado por entre um roteiro. Também estava sem vergonha de oferecer (-se), pois era o que estava a fazer. O ritmo pouco veloz o inclinava pra frente mesmo sem peso nos ombros. Mais sinceramente, me desobrigava a lembrar do desvio que já causava dores verticais. Mesmo notório e bem possível que me declinasse qualquer interesse de cuidado alheio advindo do desejo. Mexer a pélvis no meio da rua passava distante desse pensamento, até chegar no portão. 

Cancela aberta por reconhecimento fácil do senhor que já tinha visto aquela cena anteriormente. Ele, que com seu quase sotaque espanhol da Bahia, solfejou um “boa noite” entre aquele riso displicente no meio da boca. Acho que ele me perguntou se eu tava feliz, mas eu ainda tava nervoso por chegar ali de novo e com vergonha por cantar junto com a cantora que ressoava na caixa dos peitos aquelas ondas de fo(m)es de ouvido. Eu ri como se entendesse, mas prestando atenção, perguntando-lhe sobre a malícia da noite, sobre como estava a família e quando chegaria de vez as chuvas de outono. Ele também riu, deve ter pensado: que simpatia misteriosa. Pegou o pacote dessa vez e pra fechar aquele ciclo fez a questão retórica: 201, né? 


Feito! O ponto era a mais ou menos 180 metros. O silêncio era inofensivo e valente. E a música era Coração Rastafári. 

30 de outubro de 2017

Café com bolo [ou deserto da saudade indizível]




O braço esbarrou displicente na alça da xícara sob a mesa. Derrame! A quentura passou o pano grosso da bermuda xadrez enquanto outra parte do líquido fazia um desenho disforme na parte inferior da camisa de botão branca. A ordem interna me fez llevantar e achar um pano úmido na pia da cozinha e imediatamente ir ao chão para limpar o estrago no limiar início da manhã. E aí foi inevitável o cair das lágrimas.


A raiva destinada ao piso escurecido e com a aquosidade preta que caia pelo tecido molhado, em verdade, tinha a mim mesmo como causa. 

Pranto ao acordar! O lugar de sonho seria em si lugar de aconchego tão grande que mover o corpo da inconsciência me causasse dor? De certo, a estranheza frente ao reflexo de si me acometia antes mesmo do café. 

Enquanto decidia atravessar o espaço sabia que carregava comigo só as memórias que me marcavam. Aquelas que sorrateiramente me envolviam, como se delas fizesse todo meu passaporte pelo caminho. Um bolo, por exemplo. Daquela vez que a massa ficou grudada, já que, na minha soberba, o detalhe da mão suja de farinha e óleo por untar a forma fazia pouco sentido. Até cresceu a olhos vistos, mas não sei era nada mais do a minha displicência marcada pelo que não foi feito. Não que eu soubesse fazer, nem sei, mas o que martela a memória deixou de ser o que deixei de fazer, mas o não ter um bolo em mãos.

Essa química que é misturar ingredientes com memórias é sempre uma surpresa. "Eu nunca aprendi", penso.

26 de setembro de 2016

Livro de cabeceira



É que o caminho desperto pelo cerco arrasta e perfilara os sentimentos um por um. Como se fosse pra uma apresentação sem lógica, mas que desmascara a estrutura desenhada de um objeto chamado corpo.

O primeiro que veio foi o desdesejo. Esse que só existe pelo outro sem prefixo. Sem atraso, disse que faz parte do olhar do outro pra si. "Se se olhar no espelho, bem no centro dele entenderá motivos de me oferecer de forma abjeta ao alheio", me disse com sinceridade.

Sufocou com um gole de água. Não era assim tão fácil assumir tal sentimento tão imponente de pronto. Talvez o segundo lhe fosse mais delicado.

Será então que daria pra encarar o desafeto? Ri baixinho pra que não se percebesse lágrimas. Mas é claro que em um corpo como tal, com uma alma como essa, o tal sentimento segundo não seria outra escolha. Me comprometi com o infortúnio sincero de não ser. E então, não poderia causar nada em outrem que não fosse o vazio. 

Tal qual comida indigesta que o espírito não metaboliza. Como água que descumpre sua própria função de matar a sede.

Talvez seja o caso jogar-me fora, antes de se apresentar o derradeiro sentimento. E de supetão lhe escancara o desamor. Me enfraquece as pernas, me escurece as vistas, me intoxica de verdades indiscretas. Nesse ponto, o nome exato que se pode dar ao futuro é solidão. Latejando o irreal sobre asas agora já devidamente cortadas. 

Devidamente exibidos, faz então necessário escolher não agredir quem quer que seja. Ora descrito como cara estranho, recolher-me embaixo da cama, atrás do sofá, mergulhado sem respiro, absorto no chão do quarto sem tapete. 

E o nome do romance auto-biográfico seria - Do homem evasivo de fé: desdesejo, desafeto e desamor. Sozinho na prateleira.

2 de setembro de 2016

Ladeira!



Foi então que ela desceu a ladeira entre suspiros e sussurros, amparada pela emoção e pela lembrança dos tempos há pouco vividos. Esboça um sorriso tímido, afinal, tinham transeuntes dividindo aquele caminho de paralelepípedos. Os passos marcavam a lisergia do cotidiano, surrupiando a graça de manter-se ereto o punho da franqueza e da sensatez. Coerência era enigma futurista, só previa alí o sincero solfejo em tom qualquer de seu poema favorito, das pornografias de Manuel Bandeira. Ele é solta nas ancas, livre nas pegadas e abjeto de qualquer crime. Era ele quem descia a ladeira, acariciando os olhares pra si como se pra ela.

Marchava firme em passos delicados por algumas quebras. Buracos inconstantes na calçada, fina gota que tangenciava o meio-fio, passeio escorregadio. Ele gostava de usar chapéu panamá em dias de chuva, rememorando sua extensa experiência em demonstrar elegância nas levantadas de abas. Sutilezas de uma quase personagem de um conto fútil sem leitura.

Quão obstante a ladeira emergia a cada passo, sua fúria em caminhar se exauria. Notava-se paisagem amena no caminho, até mesmo uma música acontecia dentro do universo do corriqueiro passeio pela cidade. Ela produzia qualquer coisa de surpresa em si ao se pensar em ambiente de normalidade aguda: "tenho mesmo um pau e um coração prontos para o amor", recorria ao ego pra se sustentar. Fora isso, faltava-lhe o vil metal e a carapuça desgarrada de empatia pela organização alheia.

Chegara em terra firme, ele. Desfilando inerte pela firula tênue da loucura de estar. Parte do seu pronto pouso era metáfora de partir para novas subidas porvir. Do alto, arrancou parte da roupa de cima, gotas de suor da testa e no espaço entre os seios e suspiros de quem chegara anteriormente. 

Receava desejar novamente. Mas estampou sorriso martelo e deixou-se levar pelo vento uivante nos seus cabelos poucos. O amor nada mais é do que a disposição, pensou sobre si mesma! 

Ilustração: Vânia Medeiros

24 de agosto de 2016

Carta de saudade com o lugar



Soterópolis, inverno 2016.

Caro amado,

De certo, tomo suas palavras como o mundo. É que ele em expansão não me responderia com tanta objetividade delicada. Da janela entrecortada de grades, não se tem notícias de raios de sol, mas períodos de amornação  parecem necessários para diminuir a velocidade. Ao passo que a meteorologia prevê instabilidade por essas ruas. Aqui chove, não consigo sair sem me afundar em águas solitárias, numa corrente de vontades inconfessadas.

Mas há a ilusão como bem guarda. Amansadas as películas de segurança, escrever é como sal grosso solúvel em água pra aliviar o cansaço do não querer quem se quer. Talvez no fundo, o mundo precisa ser lembrado das saudades pulsantes, das imaginações contidas, das liberdades sensatas, do amor contido.

Tinham dois pássaros apoiados na janela enquanto precipitava o céu. Tinham corpos brancos com uma faixa preta no peito. Suas cabeças vermelhas contrastavam o bico escurecido. Aspiravam medo, mas tinham decidido juntar asas. Não faz muito sentido, ao bem da verdade, mas não procuravam sorte, nem pesar. Como aves, talvez pela fome de um próximo néctar juntos eu escreva. A soltar um pensamento flor de se entregar, just like oil in my hands*.

Espero que chegues de volta a ti essa carta como um floreio de pássaros de face carmezim. Algo como um cobertor mais leve em dias sem sol, já que se ensaia uma estação adversa por essas ruas ribeiras; já que querer-te perto é um ensaio de banho de nuvem. Vem?

Pelo bem querer.

Do seu,

Lugar!

* Trecho da música Like a Star de Corinne Bailey Rae

23 de agosto de 2016

Linhas discretas [ou Carta de saudade com o tempo]

 
Soterópolis, inverno 2016.

Caro amado,

Ontem mergulhei tranquilamente em águas serenas. Lancei olhares para um um lugar tão longe de horizonte, tal espaço lúdico de cores inventadas, borradas como num blueberry nigths*. Um forte amarelo regurgitava uma linha tênue de calor que espairava querida serenidade. 

E é por isso, tão só por isso que lhe escrevo. Dentro desses descaminhos seu olhar era uma imagem simbiótica na minha emoção. 

Nesses dias, escrever tem sido trabalho inóspito de solidão. Como se as palavras me jorrassem folhas secas pela paisagem. A beleza alí estava no grotesco limiar da falta amarelada e seca de vida. Mas, bonito, então, dúbio. Como cada conjunção de discursos orquestrados. O chão amontoado com a textura desconcertante do movimento vento-árvore-terra. Mas é meu ofício operar nessa página branca, latente. 

Soube por vias de sensações que são dias nublados por aí. Por aqui também chove. São águas de agonia que vão desde a fragilidade da fé na coletividade até a saudade de algo que ainda não se teve por aqui. Mas a carta tem mesmo o objetivo de falar sobre como a distância pode causar tempestades que extrapolam toda pele. Escrever-te é tal tentativa de mitigar tua ausência.

E então, quando fores leitura, sejas o abraço tal desejo de retorno ou então esse sorriso que tentas esconder agora.

Pelo bem querer. 

Do seu,

Tempo. 

* referência ao título do filme de Won Kar Wai