21 de abril de 2007

Lupa*


Relógio

Na parede do meu quarto tem um tempo que não para. Uma máquina que vive a girar, estática, num ritmo alucinantemente frenético. Ela nunca para. Na medida em que ela trabalha todas as outras coisas ao redor vão ganhando mais acúmulo de experiências. Por ela tudo envelhece. Essa máquina, presa na parede do meu quarto, quase sempre é imperceptível. Talvez pela minha recusa aos números. Se ao menos a contagem do tempo fosse em palavras... O fato é que quase nunca me dou conta de que seu trabalho revela a mutação constante dentro de mim, as transformações sensíveis que acontece em tudo a minha volta. Lança mão do profundo mistério do que há por vir embalados pelo som sorrateiro, sutil e repetitivo... Tic! Tac! Outros momentos! Tic! Tac! Outros aromas. Tic! Tac! Outra paisagem na janela. Tic! Tac! Outro eu. E, quando olho para o porta-retrato. Tic! Tac! Lembro docemente que o relógio – aquela maquininha do tempo presa em minha parede – simboliza a incessante e natural mobilidade das coisas, a qual ninguém ainda consegue fugir. Talvez pensaria sobre as incessantes incertezas que esse tal movimento da máquina queira me dizer, ou sobre a possibilidade de o tempo correr sem arestas por entre ponteiros dinâmicos. Até mesmo acharia que a máquina amedontra as pobres figuras fixadas em algum lugar da vida, algum momento de felicidade, algum paraíso. Mas, agora, percebi que o tempo está parado, sem puder continuar a passar. Então, me levanto, troco a pilha do relógio, e aí volto a pensar que na parede do meu quarto tem um tempo que não para.

Janela

De dentro para fora. É assim que consigo ver a janela. Se perceber melhor, daquele quadro estático, sai movimento. Tudo se esvai em pedacinhos de tempo. Então, a janela provoca sensações das mais misteriosas às mais libertadoras. Embebidas no prazer e mergulhadas nas possibilidades de imaginação. E tudo, assim, mais se parece espelho que projeta a ambiência e que grafa formas e cores nesse ritmo dinâmico. A minha janela é um cinema ao vivo, contando a narrativa do agora, sem limites para tais sonoridades, concretudes e abstrações. A encruzilhada do in / out com cortinas para o palco do puro cotidiano. A todo momento a cri’atividade congrega e universaliza, tal qual fosse a janela a ligação do eu com um mundo que passa por ela. Então, é cachorro, é carro, é nuvem, é gente, é tudo que cabe nesse espaço quadrado. Parece, às vezes, fonte inesgotável de frames perambulando na frente do olhar e se abrindo, em luz, para um lugar de dentro de si, um espaço sagrado. A conexão entre o sonho e a realidade. O esconderijo e a amplitude. O espasmo e a velocidade. De repente, encontros, saudades, vírgulas, solidão, tudo pode se intercambiar. Troca incessante de energia entre o que se propõe de dentro e o que é de fora por natureza. Mas, a janela continua lá, intacta, percebendo todos os sentidos, todas os momentos. Eu, daqui, fico parado apenas a contemplar. Afinal, transeunte ela não me espera e em frações de segundos modifica minha percepção do outro lado de lá. De fora pra dentro.

Ilustração: Vânia Medeiros

* Lupa é o nome da revista da FACOM/UFBA. Na próxima revista serão publicados esses dois textos na editoria Cubo Mágico. Como estará lá, vocês só poderão ver a partir de agosto, prazo de lançamento da Lupa 3.

4 de abril de 2007

Cara Estranho*


Andava com fones no ouvido. E isso já dizia muito, ainda que não se soubesse o que passava de sonoridades para seu ouvido. O que mais importava imponentemente era a irrelevância de todas as situações a volta. Não era limitação, era procura pelos olhares abstratos mesmo que rígidos. Querias ter uma maior liberdade, sem precisar de tristezas ou qualquer outra justificativa para isolar-se nos fones de ouvido que lhe acompanhava o caminhar.

"My tea's gone cold, I'm wondering why I got out of bed at all
the morning rain clouds up my window and I can't see at all
And even if I could it'd all be gray, but your picture on my wall
It reminds me that it's not so bad
It's not so bad"**

Tinha chão. Pedras, areia e muitos contextos por onde teria ainda que passar. E, claro, seu fone de ouvido. Ainda que de tão feliz cantasse chamando atenção dos transeuntes, pontuava sua liberdades acerca de demonstrações públicas de afeto.

Estivera pouco preocupado em continuar, mas existe de fato a interpretação real de o que se vê e o que não se possuia em imaginação. Construções acerca daquilo que se tem em memória é como um laço sensível entre o sonho e a perspectiva de um outro tempo presente. Por isso a música é essencial, para que o movimento seja compassado sem regras particulares, nem definições arquetípicas.

E, sem esperar por mais nada canta em voz alta:

"¿Quién me va a entregar sus emociones?
¿Quién me va a pedir que nunca le abandone?
¿Quién me tapará esta noche si hace frío?
¿Quién me va a curar el corazón partío?
¿Quién llenará de primaveras este enero,
y bajará la luna para que juguemos?
Dime, si tú te vas, dime cariño mío,
¿quién me va a curar el corazón partío?"***

Dançava, há poucos saltitando. Ridículo era não se entregar às faltas e, consequentemente, aos desejos. Dançava estranho e continuava a procurar a chuva pra acalantar o semi-árido constante do seu coração.

Ilustração: Vânia Medeiros

* Música de Marcelo Camelo
** Trecho da música Thank You de Dido Armstrong
*** Trecho da música Corazón Partío de Alejandro Sanz