17 de outubro de 2015

Fabulosas Iscas do Futuro #2015.3 [ou Finda o início]


(sons de martelo do lado de fora)


Para-raio de brinquedo. Antenas desconectadas. Árvores vermelhas em poda. Poderia ela se sentir diferente da cidade? Quando corroíam suas vicissitudes, sobrava o quê de concreto?  Talvez a esperança, pensara. Mas não tinha nenhuma vontade de desafios insólitos, ao contrário, esperava que a velocidade ampliada e os prazos irreconhecíveis se instalasse na sua pleura como parte da sua respiração cotidiana.

Voltou a se referenciar. Janelas espelhadas no alto do prédio. Manchas de peixes na borda da calçada. Telhados possíveis descoloridos. Ora, tudo não passava de descontentamento sombrio daquele sem mais interesse pelo passo apressado. As ruínas do seu próprio desejo afirmava em presságio: tudo que se molda, volta como carinho não recebido. E tudo virou-se do avesso, com o vento soprando na direção contrária do desalinho.

Cortava ainda mais aquele traço por entre suas pernas. Assaduras visíveis em sua virilha - parte da consequência do seu desprendimento com a mágica do corpo. De fato, era grade com redes para que não fujas; era rack monocromático para temperar salas; era via aberta para que a vantagem se desse em contínuo. Só não era a vantagem da solidão, que ainda procurara em todos os cantos daquela casa maior do que ele.

Mais ainda. Era o amor apavorado pela barata que voa. Era a expectativa como água na tentativa de ser empoçada em plena mão. Era a criação fomentada pela preguiça de se manter ativa. E andava pelo meio da rua querendo não ser absolutamente nada do que passava pela paisagem imaginária daquelas janelas.

- Tô destroçado, pensou ele. E o fez em voz alta pra que acreditasse que era findo o início. Sem nenhuma parcimônia, ela se viu no espelho. Continuar? Foi-se, assim, tal elevador panorâmico de lisergias. Ficou como piso tátil desalinhado no meio do poste. Sentou em areia pra ver o sol se pondo no mar da Baía.

30 de agosto de 2015

Noites [ou Noites de Bethânia]




Em pensamento grosseiro

A paisagem arbustiva se corrói
Parte de um limite de ser
Dentro de uma alegria de estar
Virado no momento de sensatez
Ancorado na vicissitude de sentir.

Ora, não sou eu quem sei de mim?
Por que, então descontrolo sensações
quando o passo é atravessado pelo desejo
que sinto de te ter por perto?

Atirado na prática cotidiana
Subtraio por instantes as colinas de fumaça
que definem horizontes abstratos.
E quando da presença da beleza em luz
Rasgo-me o peito
Pra não te responder nem com olhar

Desço as escadas pra fugir de mim
E lá está outro você
De surpresa pra me avisar que há mais sombras
que estrelas a seguir
Cabeça baixa em medo e reverência
Ao te ver passar

E então, no meu mundo
Em pensamento delicado
Tenho acolhido o universo em desalinho
E a tristeza vira beleza ao redor!
Ancorado na vicissitude de sentir
Virado no momento de sensatez
Dentro de uma alegria de estar
Parte de um limite de ser.

Ilustração: Vânia Medeiros
.

25 de julho de 2015

"Les temps sont durs pour le rêveurs"*



Abri os olhos e qual a grande surpresa, estava impermeável a sonhos. A fantasia própria da imaginação não mais poderia penetrar os sentidos. Dormir era um ato impróprio, quase soberbo, no limiar da disfunção mental. Estava tudo praticamente inerte, a não ser o fato de que tudo em sua volta era pragmatismo. Tão objetivo e feito sem esforço de imagem além. Mas também não existia mais ilusão qualquer, não tinha esforço em esconder desejos intuitivos, já que a ideia utópica do prazer era tudo efêmero e racionalizado. 

O cotidiano tinha virado uma equação matemática razoável. Nesse momento, encaixar o fazer da vida em sentido era tão complexo quanto achar o valor de x. O mundo ficou decifrável como poemas lidos de forma semiótica... Ação e reação, tudo a um passo da habilidade de leitura metricamente analisada. Mesmo a relação entre tempo e espaço, era mensurada com relógios e fita métrica sem demais variáveis.

Tudo estava estanque, sem símbolos ou metáforas como parte do dia a dia, tudo preto no branco, todos os vazios a serem ocupados sem receios, todas as desilusões previsíveis e treinadas a não realizar.

E quando me acostumava a não ser traído pelas leituras desvairadas estreitadas por sentimentos disformes, percebi que estava em sonho. As peças continuavam a se desencaixar, os ritos se desmanchavam em águas de marasmos e então o cotidiano se baseavam em um-tal-lugar-possível-impossível. Assim, mais colorido... E então ri quando a moça citou:

"Les temps sont durs pour le rêveurs"*

*Citação do filme: O Fabuloso Destino de Amelie Poulin

19 de junho de 2015

Fabulosas Iscas do Futuro #2015.2 [ou antítese no limite]



A afirmação de que há vontades inconfessáveis, aniquila qualquer paz. Ora, não há vida morna com desejos rompantes, como se o próprio caminho fossem linhas tênues de qualquer literatura impetuosa e cheia de ápices incoerentes e pungentes. Como se fossem mapas sinuosos de um território chamado memória, cartografias de sensações fixadas em espasmos acentuados.

A prerrogativa que conforta é de que a estrada a ser percorrida tem pontos de paradas que remetem sempre a qualquer parte complementar de si. Daí a invenção de não ser quem se é amanhã pra reinventar um passado faz mais sentido do que um colonizar o presente para estar, simplesmente. 

Há uma falácia em curso, a ideia de que nunca foi tão complexa a identidade criada pra si. Já que desde sempre nunca mesmo soube me dar diretrizes quaisquer para os passos instáveis que poderia forjar. 

Não era qualquer um a essa altura, mas também faltava uma referência. Conexões possíveis para moldar afetos intangíveis. Simples: o amor é feito de vícios rebeldes que compreende desde o súbito querer bem até o apego pelos detalhes da vida tecida a mão. Marcas singelas de uma veste que cobre os mesmos vazios, desde sempre.

E então, como parte de um protesto de humanização dos patrimônios, a rua viva é o meu próprio corpo, mesmo em distração, mesmo estanque.

18 de maio de 2015

Continuará















- Obrigado
- Fico esperando, então...

- (...)
- Só espero que não demores pra voltar

Orgasmo sensorial

Enquanto me olhava, falava uma pá de histórias deslumbrantes, fazendo as palavras brilharem pela coerência, pela coragem, pelo deixar-se abrir. Era a liberdade como um toque sutil na alma, como um tornar-se acessível, porta aberta pra ser inundado e não obstante ter um leve sorriso como resposta.

(Saborearam juntos um desafio para dois, como se dividissem a mesma leveza de ser, o mesmo peso também)

Restavam toques satisfeitos de sentidos, ampliando a face externa de qualquer que seja o algoritmo do prazer, rabiscando futuros acessíveis, produzindo literatos sem critérios, corroborando das práticas do envolver-se diretamente. E ele me cogitava perito de um sem fim de fragilidade, enquanto distribuía sorrisos invisíveis, malícias eloquentes. Como produzindo um palco de mistérios e desejos torpes. 

Encaixou o bem estar como faz um ser afável, tão robusto quanto sorrateiro. Tão contundente quanto delicado. Ele era como um eu em profusão, só que agora dentro de mim.

Já não tinha alí mais vazios, era solitude dividida: solidão a dois.

Taça quebradiça, película em alta resolução, cama no chão, vento frio, ingredientes e fogão, fome e sede impecáveis, conversas descabidas e olhares compenetrados. 

"Ah! Que esse cara tem me consumido 
A mim e a tudo que eu quis 
Com seus olhinhos infantis 
Como os olhos de um bandido 
Ele está na minha vida porque quer 
Eu estou pra o que der e vier 
Ele chega ao anoitecer 
Quando vem a madrugada ele some 
Ele é quem quer 
Ele é o homem 
Eu sou apenas uma mulher"*


-Tô te esperando
- Você ainda me aceita?



* Música Esse Cara de Caetano Veloso - (en)cantada por Chico Buarque
Ilustrações: Vânia Medeiros (uma com Paloma Mariano)

2 de maio de 2015

Eu, desfeito em carmesim



Vermelho (um traço forte de azul piscando, quase roxo, quase cego de tão roxo). 

Vermelho de novo (longo vestígio de verde claro repousa num círculo que se abre até virar verde musgo). 

Mais vermelho (e toda tela não se sabia se laranja ou carmim, oscilando sempre). 

Tom de vermelhos (e o amarelo parece sangue escorrendo de um aparelho de televisão preto). 

Vermelho rubro (alguém cinza, muito cinza como a solidão de uma cidade). 

Batom borrado, vermelho. Perdendo identidade, vermelho sem graça (pequeno verme latino).

Vermelho final (marrom, quase liquido, quase nada, quase a morte).

Vermelho da cor do não te quero, vermelho rejeição.

Eu, rosa, pálido, furta-cor, ausente e branco.

21 de abril de 2015

Fabulosas Iscas do Futuro #2015 [ou Ofélia]



Líquida, ó quão desmedida ela se esmerava naquele banho intrépido de ilusões e signos abstratos. Ela, quem sempre sabia de si sólida, exalava por um canto um cheiro forte de água! Era como, em sortilégio, enfiasse todos os dedos na garganta para arrancar dali qualquer que fosse as entranhas de um ser em dissolvidão. Distraída em mergulhos em si mesmo, estava alí gritando como canto seu desalinho com pés firmes no chão, seu descrédito à quentura de de um fogo qualquer, seu desentendimento com a respiração ofegante. Ela, brilhante pasta aquosa corroía todas as partes de si, antes navegáveis.

Tinha luz própria e o corpo em devaneio, como se a frente de um gigantesco parque aquífero fosse ela mesma a imensidão a desbravar. Optava pela solitude como sugerência de subterfúgio, mas não submergia sem qualquer intensidade, tão profunda que estava inspirar era sem sentido. 

O som que coloria o ambiente era o estímulo principal para que ela fosse obstinada em desmedida, tão penetrante quanto envolvente, tal ponto que o calor que saia dela desidratava os corpos tocados em suor e lágrimas. E Ofélia não era santa, sua consistência liquificada só era imaginação dizendo verdades obtusas, criando imagens sensoriais ricas em transparências e sensualidade em mistério.

Morreu afogada em próprios prantos. Arrancando suspiros alheios, dilatando as visões mais ásperas, convocando aflições suaves e iluminando caminhos de imersão ilógicas. 

Acordou disposta depois do corpo entregue em água, de tal forma que precisava nadar, braçadas consistentes para continuar e dar sentido ao movimento. Depois da ilusão do canto da sereia, de puxar um rabo de baleia, de incorporar Oxum e Yemanjá, aprender a nadar e... hummmmmmm... respiro! 

Continuou...

5 de abril de 2015

Desalinho (parte 1)


- Você pode abrir sua mão pra mim?

- Nenhuma linha aqui pode alterar o compasso do meu ritmo de pensamento. Saber me ler exigirá um artefato um pouco mais complexo, infelizmente.

- Qualquer leitura é simbólica. Posso constatar então, o fato de que eu sou a figura complexa pra literatura de você. Mas não tem importância, a essa altura eu apenas estou interessado em saber por onde não passará o seu caminho, já que (foi interrompido com um susto e um olhar mais agressivo)

- Opa! Não sou literato, nem tampouco dado a signos qualquer. Queria te dizer de todo modo que não há sequer um passo que se dê a partir de agora que não se entrelace, inclusive os não caminhos. (gargalhou sozinho... de repente reverberou de lá uma risada tímida para acompanhar). [aqui deu um rompante e levantou como se fosse discursar] - De fato, o único lugar que eu quero estar é aqui dizendo essas baboseiras pra você.

- Eu já tinha percebido sua dúvida. Seus lampejos mesmo ao deitar aqui nessa esteira ao meu lado. [levanta também]. Mas e então, abrirás pra mim sua mão? Temes a leveza de um possível caminho junto?

- Olhe minha mão [abre a palma voltada para cima] e me diga se tem chance de amortecer o limite da mágoa? Não tem ai um invólucro criativo de não ser e é essa a questão aqui posta. O caminho nem sequer se faz mais importante do que o traço latejado da memória... me diz: supera aqui as barreiras do não saber-me? Do querer não ser muitas vezes? Não há, de fato, qualquer possível nesse ínterim de caminho junto.

- Estou triste com seu desdém. Um roteiro pré-formatado de agonia se permeia pelo seu desafeto. E é a única coisa que consigo ver na aspereza da sua mão, mesmo que tão delicada.

(   )
...
...
...
(   )

- Eu entendo tanto de previsão quanto de física quântica

- Então é nesse momento que você me beija?

3 de março de 2015

Jogo de cena


Na primeira cena, ele sentou na calçada respirando de forma ofegante. Culpa dos passos rápidos que precisou dar até chegar alí. Estava correndo mesmo, e até um pouco assustado com tudo aquilo, até por ter clareza do que se intermediava alí entre a emoção e o desatino. Tudo parece confuso, mas na verdade, como cena, ele estava mais uma vez interpretando personagem já conhecido pela platéia. Um robusto teor de naturalidade saía de suas expressões, envolto nessa realidade fantasiosa fruto também das escolhas que fazia nesse tom dramático. Engraçado que o tablado se constituia de seu próprio corpo em solavanco, nada de um palco em confete, já que o cenário era tão cru que mais parecia a cidade ao redor. Tinha que seguir o roteiro, estava alí marcado: no batente de uma rua qualquer ele chora por não conseguir fugir dele mesmo, ainda que tivesse corrido léguas tentando extirpar de si o demônio mais sofrível que era sua própria constatação de fracasso em ser/estar. Nos ensaios, fez tudo diferente, se via belo e capaz até mesmo de conquistar o desejo de outrem, mas no final de contas, tinha mesmo era que seguir o script.

Mesmo com sol, tinha chuva. E ele não experimentava mais nada além do seu próprio jeito inquieto de viver sozinho. Estava em um longo exercício do atuar que se chama exaustão. Repetindo o mesmo gesto, corroborando com o mesmo argumento até entranhar de forma persuasiva no corpo como reação comum do outro que se valhe do seu corpo para ter vida. Era muito trabalho - físico até - e muita leitura para se aprofundar nessa conquista de ser o que não queria e convencer xs espectadorxs.

Todos os subterfúgios foram usados, desde lágrimas secas, até mesmo o rosto maltratado, cabelo não cortado (o personagem precisa ser ainda mais feio e acabado), olhar perdido para o mundo, entonação de voz que insinue uma fraqueza de espírito e falta de iniciativa. No palco, ainda tinha uma luz bem fraca, daquelas que a silhueta parece ter vergonha do objeto que está em cena. O som, uma captação de ruídos do ambiente da rua, tão nítido que as buzinas do carro assustavam-no de vez em quando. O grande problema daquele palco era a ausência da coxia, motivo pelo qual ele nunca podia sair do personagem, mesmo sem plateia. 

E então, quando na inteireza do sentimento do outro - que é ele, deu o texto, que mais parece um bordão: "sentado nesse pedaço de chão, no abismo da ilusão de estar em qualquer lugar que não em desejo, posso dizer que agora mais do que nunca, e como sempre (por qualquer tal incompetência que seja) - estou sozinho!