31 de julho de 2013

Dislexia emocional



"Estava a te observar", disse ela a empenhar um tom reflexivo. Continuou: "e parece que mesmo que não assim o fizesse com tanta frequência, me parece que, repito, mesmo assim, conseguiria diagnosticar esse estimulo repetitivo que te acomete, seja para gozar de si, seja para se sentir equitativamente belo".

Eu só ouvia, atento!

Foi então que gritou impiedosamente: "SUA PASSIVIDADE ME AGRIDE!" E retomando com mais calma, "não vê que esse castelo de cartas tende a desmanchar como de tantas outras vezes? Vai me dizer que tolera o descaso com o carinho que eu poderia te dar se não fosse essa sua irreversível precisão de solitude...". E parou para ouvir qualquer reação

(...)

"Há alguma liberdade nessa sua falta de transgressão? Deve haver um prazer inóspito em ser envolto em ciclos onde a carência afetiva impõe lugar de destaque na reação frente a qualquer ato de carinho alheio. Não vê que esse é o pior tipo de traição, a dislexia emocional ancorada num ridículo mal estar com a autoestima?". Ela estava decidida a virar o jogo nesse momento, como se quisesse dizer que em determinada idade as desilusões amorosas não passavam de inconsequentes imaturidades.

Não queria ouvir essas palavras torpes. De forma alguma via legitimidade nela que já irritadiça. Qualquer remediação para viver é uma ilusão vexatória, ele pensava! 

"Há o amor em mim?", perguntei quase chorando. Ela parou de falar!

Foto: João Milet Meirelles

30 de julho de 2013

Atraídos pelo sonho


(...)

Corre, vem pros meus braços feito criança em sorte.

E assim o sonho rebateu o diálogo:

Ele - Não mais faz sentido a ilusão de querer, sobretudo em tácito presente de compaixão. Lânguido, não sou mais tão disperso quanto deveria...

(interrompeu o outro)

Ele (outro) - Calma aí, não me peça nada além do que você mesmo não pode me prometer. Veja só esse arrepio todo da pele, signos insolentes de um desafio demarcado pelo carinho. Vê se pode voltar atrás assim de tudo!(?)

Ele - (esbaldando-se em gargalhadas) As palavras nem sequer parecem tão risíveis, mas eu estou a te olhar profundamente nos olhos e interpretar um futuro sem sentido.

Ele (o outro) - Isso só pode ser masturbação mental. Um rodopio imerso em um contingente solitário de vícios passados, nada mais. Só pode ser desejo, só pode.

Ele - E daí que fosse? Eu não quero a sorte natural de braços apertados frente aos meus... quero a pluralidade da paixão sobre minha alma soberba e impaciente, tentando raptar qualquer que seja a vontade plástica de suas entranhas.

Ele (o outro) - Como se eu realmente fosse livre...

Ele - Como se você optasse pela paixão desmedida usual. Se deixasse levar pela rasteira do passo em falso que é o encontro.

(Tinha uma outra pessoa, Ela, que não conseguia falar, mas que atentamente se deixava levar pelos argumentos)

Ele (o outro) - Eu sei, eu sei! Minha angústia é assumir que estou melhor do que antes, mesmo sendo antes o melhor pra seguir. Não dá pra disfarçar.

Ele - Você está como eu.

Ele (o outro) - Eu estou assoberbado, na verdade. Não tenho mais tanta voz, tenho confissões intermináveis e desabafos constantes a produzir. Nesse caso, acho que não sei mais se me atrai o novo.

Ele - Nesse caso, meu amor, o que me atrai é um novo par de calçados comum. Uma boa cerveja gelada e um pensamento complexo sobre as coisas simples. Me atrai você.

Ele (o outro) - Me atraia!

(Ela continua a ouvir atentamente, e só.)

Tudo isso, como se fosse sonho....

Ilustração: Vânia Medeiros

29 de julho de 2013

Cheiro de parque [ou magnetismo em tato]



Um gosto de verde me pegou. Leve e refrescante sabor me apalpava os sentidos. Ora, se a brisa do mar amparava os arbustos, de certo era daí a sensação de apego a matas tão vivas. E foi assim que foi, os dois alí amparados pelo vento, vertiginosamente sutil em desejo. Era ali um entrecorto, um desequilíbrio, um olhar atento e um amparar firme. E ainda que tivesse sentido tudo aquilo, nada poderia ser descoberto senão o poliamor, um amor múltiplo transfigurado em corpo tomado de ardilosa sensação.

Foi um cheiro de mato, um lago tão extenso quanto a visão poderia alcançar. Foi alí nessa paisagem de janela que um braço tomava o outro de prontidão, sem soltar, com seu único desafio de prender a chama acesa para que não afetasse o limiar externo. Tudo isso em pleno arrebol, assuntado.

E então, ponto por ponto de desejo os prendia. Embebecido de doce vinho fresco, partilhado de carícias que entoavam sons abundantes. E então fez-se o toque, como parte de um alvoroçar. Descobertas sensoriais, deslumbres desformes, corpos em retidão malemolente, exalando odor de suor e toque. E antes que pergunte por eles, eram dois, ele, ela e tantos outros, um por dentro de cada um, como um só!

O ápice apontava para a descoberta de pontos de sensibilidade. Se apressava para que apontar para o lugar certo em tato colaborasse para um contorcer e arrepio do corpo de outrem (visto que eram tantos alí incitados). Cruzou-se as pernas em coreografia, desfigurou golpes de prazer, ampliou os toques em desalinho constante, desgovernou sentidos. E o olfato agora mergulhado em literaturas e chuva artificial pedia gozo deslumbrante e gosto de pêra espumando todo corpo.

E então, como se um magnetismo viril acompanhasse os sentidos, tava alí, no caminho com cheiro de parque e lagoa em poros.

16 de julho de 2013

As Pintantes


Eram disformes em solidão. Ora, para quê tanta envergadura e tédio, se se podiam mais obtusas? E foi assim que acolheram pedras e poeira no cotidiano. Uma mais que a outra, de fato, sem perenidades vacilantes, sem agonias ou vícios falidos. Um dia se embrenhou pelo campo de matas irreconhecíveis como se não tivera medo, mas era mesmo um amarelo ouro de cidade sitiada que a prendia. Uma sem medo, como se fosse um, uma travestido de linguagem. Outra "sujismunda" de rudes alegrias pululantes. A outra mais normal mesmo, sem saber tanto de si.

Tomou o rumo fora de mim as três, mesmo que uma delas fosse homem. Era como se eu não fosse tão elas, personagens principais de uma trama de veludo. Estampando gravuras com sobreposição de imagens cortadas sem rito, sem pressuposto. Um descompasso de linearidade, sem intenção, com problemática!

Elas ovulavam juntas, como se o desejo proeminente de um tato hormonal sobressaísse sem cabimento. O argumento era de que não tinham nada em comum, além do tesão ao mesmo tempo. Repito, uma delas nem ela era como queria que fosse, até ser. Mesmo ovulando. Mostrou detalhes do seu sexo para provar-se indecisa e as outras sarapintavam as esquinas da ilusão de ser. E riam, absolutamente sem nexo.

Um dia, foram as três imbuídas pelas dúvidas ao mesmo caminho do traço. Uma mais veloz que a outra. Pelo caminho, ergueram torres de sustentação, riscos em um verde singular, tecidos rasgados com as mãos de forma a deixar um corte assimétrico por vontade, pinturas no chão da cidade e até música feita de sabor de coco e umbu. Essas mulheres que pintam me comovem, pensou o senhor à espreita. E, quando cansadas, continuaram a produzir aquela sensação de desapego.

Não tinha final, mas se assim o fosse, três desenhos corromperiam nossas visões, delas!

Ilustração: Vânia Medeiros