29 de agosto de 2013

Ela era arara azul e pavão no rosto



O corte no asfalto tem gosto de cor. Uma cor agridoce e no final azedinho. Tão acentuado seu paladar que parecia carinho nas papilas gustativas em forma de intensidade de luz. É, porque cor é luz também! Isso se sabia pela reação que teve ao ver o chão: LAMBEU! Pôs a língua naquele lugar descartado como uma forma de protesto pela falta de qualquer coisa que fazia caminhar naquele lugar. E isso, no final, era desejo de ter arco-íris na boca e operou pela textura que tinha aquele prazer.

Ela desfilava uma cabeça de pena. Isso mesmo, uma cabeça penacho exuberante. Era um pavão com cauda na cara, exposta, maliciosa e colorida, tal forma parecia gostosa de tão vivas que eram os tons do seu rosto. Seus olhos eram dois grandes círculos formados no penacho de arara azul.

No fundo, se empenhou na virilidade desprotegida. Rebolava distraída como se os quadris deslocados fossem impeditivos para o caminhar. Parava em qualquer lugar para cuspir fogo, pintar postes ou suas unhas, ouvir o mar desformar ondas

Seduzida pela rua, comia a passagem tão irreal que gananciava tristeza em prazer. Como cores em gostos!

Ilustração: Flávia Bomfim

20 de agosto de 2013

Cartas a um jovem terapeuta (Parte I - sobre o sexo)



"Me ocorria que era uma divindade o corpo. Um universo de milagre entrelaçado pelo medo e pelo desejo. Porto estratégico de vontades, ele ditava as regras da consumição, da excitação. E enquanto tateava pela inexperiência, ocupava-me de saber se esse tal que eu possuía alertava outros pelo exalar sutil de convocações, pela sua forma moldada para olhos alheios ou pelo jeito que se deslocava no universo. Só assim, claro que também com as memórias e marcas dele (o corpo), poderia merecer o toque e o gozo. O pintava, o comia feito ruptura, alimentava ele de vícios e de vazios, além de saborosos afetos, claro. No meu caso e na maioria das vezes sempre o achava imperfeito. O problema foi acha-lo demasiado incapaz de atrair outro. E por isso muitas mudanças foram feitas. Sinapses reestruturadas, alegrias pré-moldadas, corretivos desenhados especialmente para tal coisa. E vamos testar. Levei-o a bailes para que mostrasse desenvoltura, levei a conversas que estimulasse a construção harmônica de posicionamentos com conexões bem encaixadas, argumentei por leve o levando pelas caixas de bits (algumas vezes iluminando-o para fios). Antes de dizer-lhe rechaçado, admito que o enchi de esperanças de que havia desejo puramente em descobrir-lhe. Posto que de experiências, notou-se sua incapacidade de interessar. E tudo que lhe houve de toque até aqui resulta em ansiedades e vontades desproporcionais. Acometeu-se de uma vergonha assustadoramente prazerosa e não me libera sem restrições pra agendar novas tentativas. Melhor que não as tenha!"

19 de agosto de 2013

Sold out



Comprei duas doses de tédio no supermercado vizinho à minha casa. Desdenhei algumas vezes da minha condição de procrastinador, relutando contra a preguiça de mudar minha postura sobre mim mesmo. Afinal, para eu descobrir se algo tinha saído do lugar no mundo lá fora, no mínimo tomaria um banho, escolheria uma roupa apresentável, me veria melhor. Tudo isso às custas de uma visível revolução que nesse momento se chamava deixar pra lá as cobertas que me protegiam do frio e a cama que me davam prazer em me ajudar a reclamar de mim com sabedoria de mestre. Pois então, decidi comprar uns quilos de alegria e até mesmo quem sabe uns tortos litros de desejo.

O que faltava de libido, ardia de uma esperança fatídica de que eu não mais soubesse os caminhos de fazer tudo da mesma forma como fazia anteriormente. Até busquei promoção que me animasse. Até pesquisei texturas, sabores como projeção e impulsionador. Tava decidido! Abriria aquelas portas para sentir de perto aquela alegria que eu levaria ao caixa orgulhoso. Num súbito pensamento grotesco afirmei pra mim que o preço que pagaria pela peça adquirida seria muito maior que a do arrependimento do gosto não absorvido. Era notório que me perdia na escolha, mas eu andaria alí sem me proteger.

Desci ofegante as escadas para não topar com outro possível comprador nos elevadores. Tudo enlatado, talvez. Eu mesmo nunca deixei de ser. E depois, prateleira por prateleira fui seduzido mais uma vez por caras sensações de conforto sem desfaçatez. Comprarei, pensei. O risco nem era tão grande assim. Ao que pese o rótulo que eu mesmo produzi, tinha mais uma vez consumido um punhado de ilusão aparente sem prazo de validade a vencer. 

No final, se existe um desses pra vender, quem não valia nem um centavo era eu. Que aliás nem teria comprador.