29 de dezembro de 2014

Liberdade em sete passos


Ela planejou a liberdade em sete passos. Em um determinado surto de ilusão, decidira argumentar com si mesmo para decidir como conseguiria continuar a caminhar. Pensou que não seria tão fácil, mas se não conseguisse planejar o mínimo possível, não teria estrutura para manter-se. Anotou, então, no caderninho dos desejos:

1) O corte

A liberdade é um corte áspero na disputa entre estar só e não estar. É preciso encarar a dor da fenda, até mesmo não ter medo do sangue que pode escorrer. Estanca-se e se sutura grosseiramente, pois tomar decisões parece movimentar os lastros das cicatrizes e marcas que devem ficar com o tempo. O tempo, alias, deve ser o motor da ruptura que livraria do espaço de solidão ou aprofundaria o temor. 

2) Silhuetas

Aprender a ver com sombras escribas. Algo como se pudesse ler sem obviedade as coisas do mundo para interpretar a si próprio. Sem deslealdades consigo, encarar verdades para além da luz certeira. Ampliar a sensação de sentimento abstrato para alavancar as estratégias de vida.

3)  Solitude

Encarnar com seriedade o lugar da aceitação sobre estar só. Compactuar com a lisura do medo de não completar-se em outrem, mas de se saber autêntica e impetuosa comigo mesma. Fora o rio que se derrama por dentro, ampliar o sentido de ser por si parece grandioso na destreza de ser livre.

4) Pensamento complexo

Mover no cotidiano a partir de simples deduções e significantes parece nada óbvio. Quanto mais simples as conexões feitas, mais complexas e não evidentes as deliberações sobre a caminhada do mar de dentro. As ilusões são imprecisas e ao mesmo tempo tangíveis nesse tópico, talvez aqui a mais difícil aquisição do ser.

5) Bifurcações

Deixar de lado automatismos imprecisos assim como bifurcações. Sair da reflexão puramente moderna da sua condição para afetar os binarismos comuns quando da escolha possível. Ampliar as condições da estrada, mesmo que me demore em tomar as decisões reais sobre o que deixar de fora. Tomar pra mim as responsabilidades de não serem outros os lugares de escolhas, mas que há muito o que narrar para me dizer vivente.

6) Os impropérios 

Gritar inverdades - mais para novas descobertas - por aí, de forma que seja convincente de que mais se vale a defesa do que se acredita do que a verdade propriamente como tal, já que ela não existe de fato. Isso significa abstrair ainda mais a minha relação com Deus, como se eu pudesse me redimir de todos os pecados insólitos, mesmo que a heresia seja um dos piores.

7) Desaquecer o fim

Esfriar a hora da partida para deixar tudo bem orquestrado. Deixar que o medo de não ser/ter mais provoque uma agonia média em um outro "vivant" e passante por esse caminho. Daí a liberdade toma ares de ainda mais convicta. O processo se dá com desburocratização dos melindres, destronar licitações para relações e orquestrar meu choro mais temido pra quando estiver plenamente sozinha.

O caderninho não tinha mais folhas. Parece que esse tom lúdico, transformou seu plano em mais um organizador de ilusão de si do que a convicção de mudança. Porém, se a ideia sempre foi não ser e esse esvaziamento por completo motivou o sono que se abatia. Apagou cada frase como um acalanto. No final, só uma borracha desgastada e um sorriso no canto de boca...

Ilustração: Vânia Medeiros

2 de dezembro de 2014

De estar no caminho desperto (2)*



Saí por aí pra não fazer sentido

Os lugares se orientavam impossíveis
O caminho esfusiaznte
Tudo era um porém,
Mas se emanava por uma linha sensata
Um destino multicolorido
Que fora destilável.

Era tarde e eu saia
Andava com expectativa
ampliava sentidos
Insinuava laços

Me estiquei por goles d'águas
amplitudes sofisticadas
Na espera de um rompante

Me liberei naquele abraço
Do tipo que nunca tinha se dado
Acarinhado no conforto
Como se flor fosse!
Reconhecendo espaços distraídos
Como abre-alas
Como cicerone
Ampliando espaços afetivos

Estava junto!
Conectando sentidos
Fantasia salientada
Sempre em boa companhia
Com danças desengonçadas
Liberando desejos

Fome de bola de fogo guia
Caminhada soturna
Por noite adentro
Por coragem de segredos revelados
Por intimidades entrelaçadas
Dos olhos infantis satisfeitos
Das inquietudes dos tempos que virão

Disfarçamos olhares
Deslumbramos destinos
Fechamos as portas
Dividimos a cama
Entrelaçamos as pernas

E continua...

*Trecho da música Martelo Bigorna de Lenine

24 de novembro de 2014

De estar no caminho desperto*



Saí por aí pra fazer sentido

Os lugares se apresentavam possíveis
O caminho era fascinante
Tudo tinha um porém,
Mas se encaixava no fato certeiro
Um objetivo claro
Que mobilizava pelas escolhas feitas.

Era noite e eu saia
Andava com esperança 
Surrupiava silêncios
Condicionava os passos
Me debrucei por sortilégios
Dizeres sofisticados
Na busca de um rompante

Me mobilizei pelas ladeiras
Famosas insinuantes que são
Rondando tambores ancestrais
Como se flor fosse!
Não tinha menino imaginário, nem girafas,
Mas ampliei a busca, agora nos sonhos
Um horizonte estampado
Um espaço imaginário e tátil

Comi as entranhas
Minhas origens, minhas buscas
Fantasia apimentada
Sempre em boa companhia
Satisfazendo o corpo em anseio
Provocando a alma de desejos

Andei sobre as pedras do lugar
Desorganizadas e convocadoras
Cheias de novas descobertas
Reluzentes de curiosidades 
Pleiteei sambas orquestrados lá no alto
Rodas dançantes lá embaixo
Descambando em café de baile

Talvez por desejo ou coisa igual
A imaginação do rosto estava em vários
A sensação do toque perseguia
A busca me agendou a alma
Mas, no final, não tinha você.

*Trecho da música Martelo Bigorna de Lenine

4 de novembro de 2014

Rompantes de silêncios


Éramos dois a sós. Um ao outro em fúria. Ilegítimos vestígios de sensatez para um casal malfeito. Éramos sós a dois, do tipo que não se reconhece em qualquer imagem desleal que passa no quadrado de moldura branca - a tal da janela. O devaneio se orienta por não ter um pressuposto contínuo entre um e outro e por isso não tem olhos nos olhos possível, não tem toque de mãos sensíveis, não tem ilusões ancoradas em tempo e espaço.

Foi quando percebi que, mesmo assim, mesmo depois do nada, meu corpo debruçava para o dele, talvez como pressuposto para me contrair pela vontade, me redimir de tal carência, me sucumbir de vez na liberdade de estar dentro do outro.

Era um desmantelo, um ofuscar do olhar. 

E a utopia se descrevia assim: cheguei atrasado/você me espera/sorri ao me ver/me pega pela mão/me fala alguma coisa sobre "s a u d a d e d e s s e c h e i r o"/comprei seu ingresso/eu compro a pipoca/toquei sua mão sem querer/aperta meus dedos em resposta/nos olhamos///

Rompantes sinceros de apatia e de silêncios se coordenava com o jeito longe de perto do qual ele falava sobre vidas alheias. É que era a justificativa para dizer-se impedido e eu era como um macarrão que cozinhou demais, sem saber onde colocar os gestos.

Afinal, estava alí com braços esticados e coração aberto. E estava só!

*Ilustração: Vânia Medeiros

30 de março de 2014

Você, a liberdade em passos.


E foste sensível passeando pelo ambiente que mais parecia sua própria imaginação. Roubou uns três sentidos pra não se sentir sozinho e inadequado, até por que nem tão longe ali poderia haver pontos de escuridão, daí então, o medo... Foste mergulhado à seco pela paisagem que se redistribuía passo a passo sem nem sequer janelas ao redor, agradecido por você ser atento. E quando você nem imaginava terminar o passo, estava ali na frente um grande desafio, a liberdade!

E não é que ela te paralisava, ao contrário, mas ela tava ali, contente, gigante, com um volume maior que todas as prisões que se conhecia. Só não era mais robusta que o amor que estavas a procurar, mas quem compararia o amor e a liberdade em sã consciência? Seu caminho não tinha escorregão, nem um tropeço sequer. Uma agonia isso, sem impulsionamentos compulsórios, mas também desviando de toda dor. Dito isso, ela ainda continuava ali e o fato era que estava sendo agora visto encarando a liberdade.

O que tirar da cartola? A ideia de que poderia realitivizar todo seu arcabouço afetivo para planejar da sua estrada o que quisesse tendo a liberdade como bicho de estimação? O interesse de dominar o estado de solidão sem qua haja alguém para dividir a decisão sobre seu próprio destino? Ou nada, não teria nada para ser subterfúgio para a magnitude desse seu possível encontro com o ae libertador que te enchia os pulmões nesse momento?

Você ali inquieto e eu a contemplar sua divertida agonia, torcendo pra que desse encontro escapulisse pelo menos um tantinho do seu olhar para um possível encontro das nossas caminhadas.

A verdade é que você é muito mais do que conjecturas e esse encontro com a liberdade, vejo de cá, foi apenas mais um momento de vivacidade do seu espírito. Trata desse passo como se lembrasse que ser é o grande desafio, marcado pelo não ser, em contraponto com o outro, delineado por uma identidade contextual, referencial.

Dai você simplesmente andou sem olhar pra trás.

29 de março de 2014

O caminho muda o sentido do poema


A intenção me fisgou
tal peixe grande num aquário
tal pescador em desalinho
tal liberdade - e desejo
assim como linha forte de atenção
só tem sentido se a captura
for de olhar com te(n)são.

E foi assim refeita a lógica
o real intento de sabedoria
fugiria de qualquer racionalidade
pra prestar um serviço ao sensível
aquele forte e coloquial sentido
um lugar de amplitude de sensação.

O destino se alargou com 
aquelas palavras dissonantes
que rimavam estritamente
fora de si, dentro de fora
como uma bifurcação sentimental
convocando escolhas em desafio.

E então, o querer mais que bem querer
se faz intenso
tão instável, quanto natural
me revela
tal pescador em aquário
tal liberdade em desalinho
tal peixe - e desejo.

E no fundo desse rio
a estrada só convoca
e, num ponto de beleza,
o caminho muda
o sentido do poema.


Para ele, o peixe!

*para ler ouvindo Itinerário - de Mart'nália

9 de março de 2014

Sujeito indefinido [ou carta à ilusão]



Sabia-se que havia um determinado sujeito oculto por aquelas bandas. Sujeito sisudo, não introspectivo, dentes amarelados, olhos fixos de tristeza para o infinito. Diziam por alí que era gente boa aquele rapaz, que cumpria ordem, tinha opinião sobre tantas coisas e que tinha uma órbita rondante que favorecia sistematizar seu olhar em fluidos ora coloridos para ser vibrante, ora preto e branco pra ser tocante. A lenda pontua que ele era inofensivo, mas que mergulhava de cabeça na sua rotina para espantar fantasmas e medos torpes. Até aí tudo normal, mas o que espantava mesmo nele era a capacidade de se iludir.

Seria possível alguém tão ingênuo - ou até mesmo tão punidor de si mesmo - que admitia romances imaginários, paixões vertiginosas sem possibilidade de retorno, delírios de amor sem afeição correspondida? Enquanto passava ostentando um drama individual criado pela própria vontade de sê-lo, não era visto com bons olhos pela vizinhança cansada dos mesmos tropeços do tal sujeito. 

"Ele não sabe não, viu?
E às vezes dá como um frio
É o mundo que anda hostil
O mundo todo é hostil"*

Vestia roupas comuns e tinha ojeriza a não ter cheiro. A ideia nunca foi chamar atenção, mas ser creditado pela sobriedade. Nada exagerado, mas intempestivo. Nada comum, mas disforme, como algo em pleno desmoronamento. Ele poderia ser comparado, inclusive, com um não ser, ameno, na medida exata de não ser oito, nem oitenta, um número como o 37, sem relevância.

Não poderia se incomodar publicamente com a ilusão tão desmembradora, já que lhe era natural que acontecesse. Se lhe coubesse um produto análogo, diria de uma novela sobre a qual a previsibilidade já incomoda os telespectadores. Sujeito dito comum, relativamente descartável, dispensável. 

Foto sobre ilustração: Vânia Medeiros

* Trecho da música De onde vem a Calma do Los Hermanos

5 de março de 2014

Carnavália VIII



No princípio era o mar... era assim como uma condição sui generis de expectativa para uma abstração emergente. E era só aquela imensidão que se perde de vista, verde ou azul, ou colorido. No início se fazia o mar que era gente. Como água perene e distribuindo fluidez escorregadia, salgada, saborosa. E fazia parte de um oceano de sensações que misturavam liberdade e disposição para o outro, no clima convocador de desejos. 

A ideia foi mergulhar nas profundezas do desatino feliz. Na grande ilusão de felicidade que se somava com a energia pulsante do prazer em coletivo. Tava tudo iluminado naqueles caminhos, convocando fisgadas ululantes, arriscando jogadas sonoras em redes mobilizadoras. 

E íamos como cardumes em um grande fluxo com pulsações diferentes, com cores que se misturavam, com sorrisos exaltados e inspiradores, com corpos suados e/ou molhados em toques, com beijos sinceros em querência, no molejo que mais parecia uma redenção comum. Mas o melhor era os encontros. Ah! Como eles são lindos naquela avenida. Comandam abraços apertados, mesmo efêmeros. Invocam cantos em comum olhando nos olhos como cúmplices. Mãos que se apertam efusivamente. O calor do toque.

Mas também tinha uma paisagem de disposição, esse orgulho de ser, a leitura política de si mesmo, o desajeitado balançar de corpos, confetes, serpentinas, espumas. Travestimentos, criação de personagens que se entrelaçam num grande teatro de alegria. 

E a pulsação vibrante me tomou ao mar da Baía. Eu, simples pescador, na carnavália!


para o carnaval com amor! para minha liberação de corpo e mente. para a saúde. para luiz caldas e armandinho. para o cordeiro que me trouxe a emoção reacional. para os meus. para henrique, caio, mário, ewerton, iracema, jamile, digo e gil pela disposição e atenção. para zédi e talita, amores, sempre juntos. para karlene minha companheira e pelas risadas só nossas. para dora e iuri pela acolhida. para aline, como sempre na lindeza. para claudinha e flavinha pelas gargalhadas. para lulu pela completude e amizade. para simone e isa, queridas. para o peixe antônio que me tomou. para xotoko e diego pelas sempres boas conversas. para guilherme de surpresa. para dido com carinho. para o ilê e o povo do curuzu que me tomaram de emoção. para brown, bailinho de quinta. para o baiana system, arrebatador. e para todas e todos que optaram por me abraçar no circuito, na folia, no amor.

18 de fevereiro de 2014

Ritos cotidianos



Passava por duas pontes em seu roteiro cotidiano. A primeira estava lá sem grandes reflexões, apenas como um conector de um lugar a outro onde o desafio era apenas o atravessar simplesmente, curto processo, possível fazer sem grandes talentos. Já a segunda era um pouco mais complexa, aquele quase viaduto sobre a vida estava ali mais como um decodificador de transposição do que um catalisador de passagens. A transposição de um ambiente para outro por ela não existia sem um olhar difuso sobre o que poderia significar estar do outro lado, cotidianamente. A segunda ponte era torta. Isso mesmo, entortada para um lado. Sempre havia aquela desconfiança sobre seguridade e a partir daí o que fazer se acontecer dela se arrebentar e ele cair deitado sobre a rotina de outrem. 

Tentava sempre desligar do que estava a fazer: atravessar a ponte que ligava o lugar de antes para o lugar de depois por cima do confuso ambiente do requintado dia-a-dia. Ela [ele, depois que passava], conseguia o bem estar quase sempre por ouvir música. Sabia que se pensasse no tal ato de ser um e metamorfosear-se em plena passagem, talvez nem conseguisse passar. Era como tentar tornar habitual, como andar o era e, assim como no andar, pensar dificultaria o que poderia ser comum.

Logo, ela, não mais ele, olharia com parcimônia para o triunfo de mudar em passos largos pelo caminho. Era risível a forma como a primeira ponte nem lhe mobilizava, mas a segunda era como ultrapassar um arco-íris almejando tesouro dentro do seu próprio destino. Imagina* se teria um sorriso legítimo para dar agora. 

Era ele quem almejava o desafio e era ela quem transpunha a passagem. Uma imensidão de obstinação e paciência com suas próprias faltas inacessadas. Ilusão podia ser o adjetivo utilizado, mas naquele momento de falta de verdades absolutas sobre si, pensara-se como uma janela que se fecha ou um vidro que absorve a luz para outro lado de lá. Era um vazio penetrável. Ficara algum tempo indisponível depois de seguir em frente logo após transformada. E voltava a ser ele assim que o encanto pragmático se descompunha. Em outro dia de rotina, outras duas pontes esperavam ser desconstruídas e assim se dá o cotidiano.

Ilustração: escada de Vânia Medeiros

* Daniel Jobim diz que essa foi a primeira música feita pelo seu pai que não queria letra. Chico Buarque teimou e a fez. Cantou esse último com Mônica Salmaso lindamente.