18 de fevereiro de 2014

Ritos cotidianos



Passava por duas pontes em seu roteiro cotidiano. A primeira estava lá sem grandes reflexões, apenas como um conector de um lugar a outro onde o desafio era apenas o atravessar simplesmente, curto processo, possível fazer sem grandes talentos. Já a segunda era um pouco mais complexa, aquele quase viaduto sobre a vida estava ali mais como um decodificador de transposição do que um catalisador de passagens. A transposição de um ambiente para outro por ela não existia sem um olhar difuso sobre o que poderia significar estar do outro lado, cotidianamente. A segunda ponte era torta. Isso mesmo, entortada para um lado. Sempre havia aquela desconfiança sobre seguridade e a partir daí o que fazer se acontecer dela se arrebentar e ele cair deitado sobre a rotina de outrem. 

Tentava sempre desligar do que estava a fazer: atravessar a ponte que ligava o lugar de antes para o lugar de depois por cima do confuso ambiente do requintado dia-a-dia. Ela [ele, depois que passava], conseguia o bem estar quase sempre por ouvir música. Sabia que se pensasse no tal ato de ser um e metamorfosear-se em plena passagem, talvez nem conseguisse passar. Era como tentar tornar habitual, como andar o era e, assim como no andar, pensar dificultaria o que poderia ser comum.

Logo, ela, não mais ele, olharia com parcimônia para o triunfo de mudar em passos largos pelo caminho. Era risível a forma como a primeira ponte nem lhe mobilizava, mas a segunda era como ultrapassar um arco-íris almejando tesouro dentro do seu próprio destino. Imagina* se teria um sorriso legítimo para dar agora. 

Era ele quem almejava o desafio e era ela quem transpunha a passagem. Uma imensidão de obstinação e paciência com suas próprias faltas inacessadas. Ilusão podia ser o adjetivo utilizado, mas naquele momento de falta de verdades absolutas sobre si, pensara-se como uma janela que se fecha ou um vidro que absorve a luz para outro lado de lá. Era um vazio penetrável. Ficara algum tempo indisponível depois de seguir em frente logo após transformada. E voltava a ser ele assim que o encanto pragmático se descompunha. Em outro dia de rotina, outras duas pontes esperavam ser desconstruídas e assim se dá o cotidiano.

Ilustração: escada de Vânia Medeiros

* Daniel Jobim diz que essa foi a primeira música feita pelo seu pai que não queria letra. Chico Buarque teimou e a fez. Cantou esse último com Mônica Salmaso lindamente.

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