27 de março de 2006

de ponta cabeça!



Ela me pintou colorido. E tudo ficou colorido a minha volta. De certo ela queria me mostrar que existem cores em mim que talvez eu ainda não reconheça. Tudo a minha volta ela pintou colorido e eu, insensato que sou, me conectei a um símbolo máximo de minha mudança: perceber que tudo em mim é diverso. Isso me faz menos egoísta, aloja-me na condição de contemporâneo, quando no me ver na diversidade descubro que sou produto de composições.

"É uma índia com colar, a tarde linda que não quer se por. Dançam as ilhas sobre o mar. Sua cartilha tem um A de que cor? O que está acontecendo? o mundo está ao contrário e ninguém reparou"*

Quanto a me parecer desconfortável é apenas uma visão. Ainda não descobri por que, mas minhas pernas, mesmo dobradas, me sustentatm. Quando esse mistério for desfeito talvez até entenda por que sempre vejo as coisas de forma tão diferente. O que sinto é que estou em uma posição tão revolucionária frente ao mundo que não me conecto mais com as formas banais de estar por aqui. Por enquanto não há reflexos, mas agora é o que menos importa. Parece que os tons a minha volta dizem muito de mim. Acho até que fui feito por encomenda, que falo por encomenda, mas minha missão ainda não descobri.

"Os homens são anjos caídos que Deus mandou para a Terra por que botaram defeito na criação do mundo (...) E eu voava alto por que tinnha um grande par de asas (...) Os homens aprenderam com Deus a criar e foi com os homens que Deus aprendeu a amar"**

A impressão que se tem é de que meus olhos estão mais cansados que qualquer parte do meu corpo. Agora é ínfima a vontade de sair do lugar. É necessário estar rodeado desse colorido tão intenso (que não devia mais me enganar).

"E como uma segunda pele, um calo, uma casca, uma cápsula protetora. Ah! eu quero chegar antes, pra sinalizar o estar de cada coisa, filtrar seus graus"***

Boa parte do que sou é bem versátil. Minha alma neste território é translocada pela tmanha imaginação dela. Em seus olhos, deixo de ser tão abstrato. Eu poderia estar no espaço cinzento e sei que, sem graça, sou só preto no branco, mas ela me pintou colorido.

Ilustração :: Vânia Medeiros

Texto em homenagem a ilustração "De ponta cabeça" de Vânia Medeiros.

* Trecho da música Relicário de Nando Reis

** Trechos da poesia Anjos Caídos de Lirinha

*** Trecho da música Esquadros de Adriana Calcanhotto

21 de março de 2006

anti-biografias!



Não foi de repente que ele se deu conta de que passeava frequente pelos caminhos tortuosos que o levaria a lugares inimagináveis. Não foi por acaso. Nem é surpreendente saber que ainda levará tempo (e muito tempo) em que ele continuará andando sozinho. Os pássaros, as borboletas e tantos outros bichinhos voadores já se apaixonaram e estão felizes com as flores de outros jardins.

Ele não deixou de ter asas, nem está satisfeito com a idéia de nunca ter correspondências, mas aceita de bom grado o carinho que lhe é oferecido.

"Você me deixou satisfeito

Nunca vi deixar alguém assim

Você me livrou do preconceito de partir

Agora me sinto feliz aqui

Quem foi que disse que é impossível ser feliz sozinho

Vivo tranqüilo, a liberdade é quem me faz carinho

No meu caminho não tem pedras nem espinhos

Eu durmo sereno e acordo

Com o canto dos passarinhos

Eu durmo sereno e acordo

Com o canto dos passarinhos"*

Quando olha para fora de si, verdejantes e sinceras ondas lhe acometem do desejo de ser um todo partido. Seu cotidiano é cercado de afeições e experimentações estéticas. Tudo isso enquanto sua mente produz e cria gigantescas obras insalubres difíceis de serem percebidas. Vem e vai. Não tem dificuldade de sentir, apenas de movimentar-se. Correu, ficou embaixo da árvore esperando a chuva passar, prestou atenção no latido do cachorro, nos pneus dos carros, nas pequenas abelhas, no que elas estavam pensando sentadas esperando o ônibus chegar.

"Eu sou qualquer imagem plástica e superficial. Soldadinho de brinquedo marchando para o não-sei o que. Estória mal contada por uma velha desdentada. Sapo dissecado esperando pra chover. Frase feita edificante para surdos sem sorvete. Nada certo a curto prazo é um pouco do que eu sou".**

Possuia um andar no todo elegante. Impressionar a visão, mas, de certo, é que nunca encantou. Pelo menos dá para perceber articular os maxilares similando construções verbais, quase fala, soletra. Observou que o menino que há pouco estava brincando com as pedras do labirinto tirou a camisa, abriu um sorriso e correu. De novo era só ilusão, continuou a caminhar sozinho. Tinha se perdido no emaranhado de castelos construídos na imaginação. Não tinha mais tanta coragem, nem era mais tão ingênuo ou verdadeiro. Pelo menos se reconhecia na identidade:

"Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidas se tornam desvinculadas - desalojadas - de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem 'flutuar livremente'. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós) , dentre os quais parece possível fazer uma escolha"***

Quando ele estava parado naquele lugar pedi para que não se descrevesse. São inúteis auto-biografias.

Ilustração :: Vânia Medeiros

*Satisfeito - música composta por Marisa Monte, Arnaldo Antunes e carlinhos Brown

** Texto de Johnny Kagyn - http://www.infinitoparticular.blogspot.com

*** Trecho do livro "A identidade cultural na pós-modernidade" de Stuart Hall

10 de março de 2006

Diálogos Estáticos


Fror - Ele anda meu nêgo! Anda por que não consegue ficar estático. Ele anda e se movimenta. Ele anda movimentado pelo dinamismo que acontece em seu corpo. Ele anda e quase corre. Isso por que tem o desejo infantil de acompanhar o movimento dos impulsos elétricos que acaba chamando de pensamento. Preste atenção nos pés dele neguinho. Empurra o chão para trás com muita força. Não consegue andar estático, não admite a possibilidade de estar parado. Não parece ridículo? insensato? Mesmo assim, o maior dos problemas é que ao andar falta-lhe capacidade de contemplação.

Neguinho - Decerto que é desatento, fror. Decerto. Deixa a desejar no que produz. Anda sem compania e não sabe o que fazer quando alguém se aproxima. Não sabe dos novos paradigmas, mas não se acha original por não seguir modelos. Não é bonito, não, mas eu fico esperando ele andar por aqui.

Fror - Eu prefiro acreditar na beleza. Até acho mais interessante. Adoro quando ele passa cantando, por exemplo.

" Eu ontem fui dormir todo encolhido
Agarrando uns quatro travesseiros
Chorando bem baixinho, bem baixinho, baby
Pra nem eu nem Deus ouvir

Fazendo festinha em mim mesmo
Como um neném, até dormir
Sonhei que eu caía do vigésimo andar
E não morria
Ganhava três milhões e meio de dólares
Na loteria
E você me dizia com a voz terna, cheia de malícia
Que me queria pra toda vida

Mal acordei, já dei de cara
Com a tua cara no porta-retrato
Não sei por que que de manhã
Toda manhã parece um parto
Quem sabe, depois de um tapa
Eu hoje vou matar essa charada

Se todo alguém que ama
Ama pra ser correspondido
Se todo alguém que eu amo
É como amar a lua inacessível
É que eu não amo ninguém
Não amo ninguém
Eu não amo ninguém, parece incrível
Não amo ninguém
E é só amor que eu respiro"*

Neguinho - Providencial essa canção. Mas não te diz muita coisa. A verdade é que quando ele anda, não tem muita pretensão em organizar o pensamento, de dizer algo. Eu já disse que ele não muda nem o passo? Observe como o andar dele é lúdico. Por incrível que pareça é uma brincadeira que inspira uma súbita vontade de aprender o que não se conhece. O ritmoque não conseguiu gravar, o número do telefone que não tem de có. É um absurdo a lentidão. Quase Macabéa** (que me perdoe a diva!).

" Aceitarás o amor como eu o encaro ?...

Aceitarás o amor como eu o encaro ?...
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.
Não exijas mais nada.

Não desejo também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.
Que grandeza... a evasão total do pejo

Que nasce das imperfeições.
O encanto
Que nasce das adorações serenas". ***

Fror - Parece tão inteligente de longe não é? Da próxima vez compro-lhe uma bicicleta!

* Música "Não amo niguém" composta por Cazuza, Roberto Frejat e Ezequiel Neves
** Personagem principal do romance "A hora da estrela" de Clarice Lispector
*** "Aceitarás o amor como eu o encaro ?" poesia de Mário de Andrade

2 de março de 2006

Carnavália*


O sentimento de agrupamento... de pertencimento foi o limite do despreendimento do corpo e da alma. alegria, tinha-se ali possibilidade de felicidade em doses amigáveis. De paixões elevadas à vontade de permanecer observando era um pulo... tinha uma ponte que separava a loucura do desejo e, simplesmente, era muito tênue! Era frivolidade sim... era muito mágico e colorido... era belo e com todo seu conceito estético, afinal eram pessoas, era muita vida. Jeitos diferentes de encarar a concretude de lama do lugar. Era brilho, era brilho!


" Alegria
Pra cantar a batucada
As morenas vão sambar
Quem samba tem alegria!
Minha gente
Era tristre e amargurada
Inventou a batucada
Pra deixar de padecer
Salve o prazer
Da tristeza não quero saber
A tristeza me faz padecer
Vou deixar a cruel nostalgia
Vou fazer batucada de noite e de dia, vou sambar
Esperando a felicidade
Para ver se eu vou melhorar
Vou cantando , fingindo alegria
Para a humanidade não me ver chorar"**


Tudo na verdade não passou de um delito, uma fuga...
fazer esquecer... tirar da mente que existe um mundo real e que um outro mundo é difícil! A grandiosidade da sensação era unânime. A vontade era que a abstração fosse preponderante, que o sentimento de harmonia entre a energia interna e a fruição do espaço acontecesse de forma simples e foi fluidez que se via em toda a parte. O prazer estava posto à experimentação e foi providencial... Encontros, conhecer, trocar olhares e sensações... muitas muitas cores!


" É macaxeira, Imbiribeira, Bom pastor, é o Ibura, Ipseb, Torreão, Casa Amarela
Boa Viagem, Genipapo, Bonifácio, Santo Amaro, Madalena, BoaVista, Dois Irmãos
É Cais do porto, é Caxangá, é Brasilit, Beberibe, CDU, Capibaribe, é o Centrão
Eu falei!
Rios, pontes e overdrives - impressionantes esculturas de lama
Mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue
Rios, pontes e overdrives - impressionantes esculturas de lama
Mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue
E a lama come mocambo e no mocambo tem molambo
E o molambo já voou, caiu lá no calçamento bem no sol do meio-dia
O carro passou por cima e o molambo ficou lá"***


na entrega das sensações, nos brilhos de olhar, no abrir a casa (no amor)
no subir das ladeiras, nas máscaras, nos blocos (no ritmo)
na passagem do trem, no andar do taxímetro, no ônibus (CDU (Várzea))
na fantasia, nos presentinhos, nos sonhos (no pandeiro)
na chuva, no grande sol, no andar, no dançar (no sentir)


Grande carnavália...


* música de Carlinhos Brown, Marisa Monte e Arnaldo Antunes
** "Alegria" - música de Assis Valente e Durval Maia
*** Trecho da música "Rios, pontes e Overdrives" - composição Chico Science e Fred 04


(texto em homenagem ao carnaval 2006 em Recife - homenagem a Vân Van - lindo espírito de lulz que me levou; Moniquinha - linda alma que se entregou a nós; Leninha e Fernandinho que abriram as portas da casa e nos entregou a chave; Sarinha e Kerols pela lindissima companhia; e a outras tantas pessoas que conheci e que estavam junto a nós nessas noites)