20 de julho de 2006

Em tempos de labirinto!

Parecia um jogo. Passos para frente e um caminho a seguir co-move. A vontade de andar abstrai qualquer sensação (e haja movimento como propulsor de produção e significante de vida). Mas é um caminho tortuoso, sem placas adiante. Talvez sinais, mas isso só pode-se saber ao longo do tempo - ou da leitura dessas palavras. A proposta é chegar a um outro lado que ao menos se sabe da existência. O outro lado do círculo existe? E se o caminho for um círculo? Mas a proposta é apenas caminhar, nada de aceitar desafios monótonos de responder a qualquer questão. Também não há respostas gratuitas e o que se paga por tentar respoder questões poe ser pedras no caminho ou, nesse caso, curvas longilíneas nessa estrada que já é em si tortuoso. Pode-se parar por aqui! Se vier a mente um pequeno questionar sobre por que devo andar ou a quem interessa o movimento. Mas há de estatizar no momento de um desafio? E se precisa de um alguém para que o jogo aconteça? Me dizia o moço do pastel (aquele que adivinha certamente o meu desejo - queijo coalho, cheddar, catupiry e mussarela) que "a paixão do homem é certamente o desafio de satisfazer desejos". A única certeza que tenho antes de começar a caminhada é que ele conseguiu me provocar.

Mover os pés. O destino de certo vira prerrogativa de tomada de decisões, mas no fundo apenas justificativas. Da vida, o olhar é singeleza e o que se abre de lisonjeio ao futuro é apenas limitações de esperança. O importante é que se mantenha colorido o lugar. Os passos são acima de folhas verdes. Estas não se faziam capazes de se movimentarem, como se necessitassem serem afetadas ou participar dessa andança. O verde deles é rigojizo! Sensação de possibilidade... de pés descalços na terra. Ninguém passano pelo caminho. E aqui é importante se deter. Ninguém escolheu esse caminho, a não ser o meu puro anseio por desafios. O que não é em si solidão, então, mas faz dessa estrada um percusso solitário. Mais certeiro (e em si mais difícil de aceitar) não atrai gente para o seu mundo - sem justificativas! Bem, já se falou do verde no chão e da falta de gente. Continua a andar, curvas, lugares nunca dantes descobertos, mas parecidos com sonhos como deja vú. Sorte é encontrar porta, delas se admitem outras conclusões e percepções atuais. Quando do mar visto de longe, a sonoridade do sentir calor fresco. Água e outras formas de molhar sem líquido. Emancipação do sentir, sentir com os poros em abertura!

"É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã"*

Mas aos movimentos circulares próprios da aspereza e da condição temporal do corpo fizeram da percepção uma esteira de palha one se condensavam imagens produzidas pelo agir. A imaginação palha da esteira, ou algo nesse trocadilho torpe. Perdeu-se em si e no ambiente. Perdeu corpo e alma, como se tivesse perdido a carteira de identidade, a licensa de profissional, a carteira de motorista. Perdeu vestimenta e pele. Um desespero é a única coisa que lhe restava. Ficaria sem se encontrar até quando? Mergulahr em si e mais curva encontrar. Angústia. Nessa vereda, nessa via, nessa norma de proceder. Atalho? Estava perdido. Eu não conseguia mais me encontrar.

"alta noite já se ia,
ninguém com os pés na água.
nenhuma pessoa sozinha
ia, nenhuma pessoa vinha.
nem a estrela guia,
nem a estrela d’alva..."**

A imaginação tomou conta, perdeu-me no tempo e achei o espaço por enquanto. Não é mais "estou perdido". Estou no caminho que consigo compreender. Mais vale isso qeu criar atalhos que me levem a irremediáveis sensações de vazio ainda maior que esse que sinto. Parece sim um labirinto e eu, maltrapilho, gato selvagem e assustado no limite do asfalto, não enxergo nem minhas próprias pernas para saber onde se pode alcançar. Nem o final, mas esse tudo bem, não me importa mais! Meus pés tem tinta vermelha. Isso por que o verde das folhas e o marron da terra são as outras corres do arco-íris desse percurso. Mais cores. Quando tiver mais gente a passar por aqui. Talvez a espera da menina rosa de óculos negros. Mais cores? preciso de mais cores? preciso!

Ilustração :: Iansã Negrão

* Trecho da música Águas de Março de Tom Jobim (na voz de Elis Regina e Tom Jobim)
** Trecho da música Alta Noite de Arnaldo Antunes

11 de julho de 2006

A libélula*


[palavras para o dr. carvalho]

se destas pedras uma
anunciasse
o que a faz silêncio:
aqui, muito perto,
[...] isso se abriria, como ferida
em que terias de mergulhar

Paul Celan, A Força da Luz

Um som fluido abandonava a casa, roçava na poeira das trepadeiras no jardim, influenciava as mangas e os mamões no seu processo de maturação, arrepiava uma libélula inebriada que ali adormecera, fazia o sol abrandar e chegava, ainda forte, ainda nítido, ao ouvido da mulher. Depois disto, um sorriso.

Na aparelhagem o som acontecia contínuo, ininterrupto. O doutor solidificara este hábito domingueiro: sentar-se no fresco da sua varanda ouvindo durante extensos momentos a voz de Adriana Calcanhoto. Ora dormitava, ora lia, ora escrevia, ora se quedava simplesmente de olhos rasgados contemplando as nuvens gordas azularem o céu. Para ele não se tratava de beatificar um domingo, mas sim a própria paz. Aliás, «domingo» era, para o doutor, uma palavra muito interna. Fosse um poço.

Pressentindo isto - que o doutor se apresentava em pleno estado de domingo -, a mulher hesitou. Encostou a testa ao ferro do portão e quis acreditar no impossível: que não tinha sede. A testa latejava; os olhos se queriam, de facto, fechar, olvidar o mundo, cessar a prestação dos serviços visuais. O frio do portão trouxe-lhe agrado aos dedos, ao coração também. E a música invadia-lhe os poros. Então, aí sim, ela dividiu uma sensação com o doutor. Ele, no mesmo instante pensava: esta voz, sim, pode ser dividida. A voz de Adriana, empurrando a tarde: “será que a gente é louca, ou lúcida... quando quer que tudo vire música...”

No intervalo de voz, a libélula decidiu acordar, mover-se em zum-zum aberto, e aterrisar junto aos apontamentos do doutor. Gatafunhos, memórias recusadas, esquebras de horas mais sensíveis que escusava aceitar como suas. “Eu perco o chão, eu não acho as palavras” - e a libélula conseguiu acordá-lo. Há anos que acertara as contas com os animais e se apaziguara numa relação equilibrada com eles. Mantinha uma relação ainda conflituosa com as baratas e os sardões, mas já não era homem para matar. Em vez disso, usava sorrir. Não raras vezes, pela manhã, sentia saudades de ver correr olongos como vira lá longe, na infância, na província do Namibe; também por vezes, na praia, encontrando cavalos suados se detinha, de olhos a quererem fechar, saboreando o odor forte a pêlo de cavalo suado. Se feliz ou em vésperas de viajar, sonhava com borboletas brancas ou ligeiramente amarelas, e não procurava interpretar o sonhado. Há anos que fizeras as pazes com os animais, incluindo a espécie dengosa dos gatos, à qual ele mesmo infligira uma baixa mortal. Os gatos, essencialmente os gatos, reaproximaram-no dos bichos.

Foi depois da libélula que reparou na mulher encostada ao seu portão, de olhos fechados, pareceu-lhe, a ouvir a música de Adriana,

“Tenho por princípios nunca fechar portas, mas... como mantê-las abertas, o tempo todo...”

Descruzou as pernas; lentamente as desceu da outra cadeira, enfiou as sandálias. Andando, mirava o ar tranquilo da libélula caminhando sobre as suas letras, sobre o cheiro da sua tinta 971 violet. Era tinta um tanto pegajosa, exigia mesmo um ritmo acelerado de escrita pois, em contacto com o ar, era veloz em solidificar. Mas a libélula não é um insecto curioso, o doutor sabia, ela não chegaria ao frasco, não beberia. Um degrau, dois. Está junto ao portão e a mulher, ao contrário do que ele desejava, não abriu os olhos. Mas falou.

- Desculpe interrompê-lo...

Nem foi susto nem foi coisa de se descrever. Simplesmente o doutor não contava com aquela noção de proximidade. Ela sentira-o?

- Reconheço o cheiro da tinta... O senhor escreve com uma pena?

- Não... Isto é... Sim, é uma espécie de pena...

O portão estava destrancado. Ele fez menção de o abrir, ela abriu os olhos, afastou-se ligeiramente das grades.

- Desculpe interrompê-lo, mas estou com muita sede - ela, talvez esperando que o doutor, num qualquer comentário, revelasse se desculpava ou não a intromissão, se se sentira incomodado ao ponto de alterar o seu humor.

O portão foi aberto pela mão certeira do doutor, enquanto a outra executava um gesto afável que a elucidou. Aquele homem não era facilmente perturbável. “Lá mesmo esqueci que o destino, sempre me quis só...”

- Água ou refrigerante? - o doutor.

- Água, por favor.

A mulher viu a libélula ali parada. Tinha a cor demasiado viva para estar morta ou embalsamada, mas era totalmente imune ao vento que baloiçava as folhas de papel. Aproximou-se da mesa sem se sentar - a mulher. Por curiosidade olhou as letras sobre o branco, não no intuito de ler a composição, mas pelo hábito de apreciação da estética ortográfica masculina. Era, viu depois, uma «espécie de pena», como lhe dissera o doutor, a que havia produzido aqueles gatafunhos encantadores. Não resistiu e chegou a mão perto: parecia cristal.

- É de vidro. Vidro mesmo. Não é bonita?

- Muito... É uma pena muito especial.

A água, num copo normal, chegou-lhe às mãos. O doutor entretanto pousou o jarro semigasto num lado longínquo da mesa, sem perturbar a libélula. Fez menção para que a mulher se sentasse.

- Obrigado... O senhor deve estranhar, não?

- Estranhar?

- Pedirem-lhe água... Já ninguém toca às campainhas para pedir água, não é?

- É... A senhora não é de cá, pois não?

- Não.

A mulher serviu-se novamente. Bebia devagar, como convinha.

- Contava uma avó minha que, certa ocasião, em Silva Porto, um senhor lhe entrou pela casa a dentro cheio de sede e lhe pediu água. Minha avó voltou à sala com um jarro de água muito fresca e assistiu-o beber três copos de água de seguida, sem parar.

- Foi?

- Foi. O senhor só teve tempo de lhe devolver o jarro, pois o copo partiu-se enquanto ele tombava no chão. Morreu ali mesmo, sabe? Desde então a minha avó vivia a contar esta estória, de resto, verdadeira, pois foi-me confirmada pelo meu avô.

- Não me assuste...

- Não foi para assustá-la, desculpe.

- E o que lhe disse o seu avô?

- Sabe, o meu avô era um homem de invulgar humor e sensibilidade. Em criança confirmou-me toda a estória e por fim disse-me: esse homem nem agradeceu a água à tua avó.

A mulher pousou o copo, respirou fundo.

- Sabe porquê que pedi água aqui na sua casa?

- Não.

- Por causa da música... Esta voz tão doce.

- Adriana.

- Como?

- Adriana Calcanhoto, cantora brasileira.

- É poeta?

- Também.

- Não... O senhor. O senhor é poeta?

- Ahn, eu! Não, sou médico. E a senhora?

- Eu estou cá de férias.

A libélula progrediu no terreno, finalmente mexeu-se, mas andando.

Nas expressões de ambos era visível o espanto, como duas crianças que atentas e boquiabertas assistissem, de repente, ao movimento gracioso de uma pedra. A libélula caminhou em direcção ao objecto. Num breve sacudir de asas saltou e voltou a estar quieta - uma guerreira demarcando o território conquistado. “E a greve entre as estrelas só para mim”, a cantora progride na varanda, na tarde.

O objecto era uma redoma de vidro, certamente cara, que protegia uma pedra minúscula, cinzenta, banal. Uma pedra pequenina, era o máximo que se poderia dizer. Nem graciosa, nem curiosa, nem mesmo exótica ou atraente. Era uma pedra brutalmente vulgar. A instalação, contudo, valorizava a pedra.

- Julgo que o valor dessa pedra não pode ser medido pela sua aparência. É assim?

- É muito assim, sim.

- Mas esta redoma parece muito bem trabalhada...

O doutor, num gesto resoluto, abanou a libélula. (Uma surpresa para a mulher e para a libélula). O insecto voltou a pousar sobre as letras. A pedra e a sua redoma foram arremessadas ao chão. A mulher não teve tempo de invocar um susto. O objecto bateu ruidosamente no chão por duas vezes e, após rolar alguns centímetros, terminou a digressão. O doutor pegou no objecto e voltou a pousá-lo sobre a mesa, ao pé das letras, dos papéis, da libélula. O insecto, num breve aspergir de asas, realcançou o seu posto.

- Esta redoma é muito boa para proteger objectos valiosos.

A mulher voltou a sentir sede mas não quis incomodar.

- Uma oferta?

- Sim, uma oferta muito especial, muito sincera.

- Os médicos recebem muitas ofertas?

- Algumas, é uma maneira das pessoas expressarem carinho e gratidão.

E calou-se.

A mulher não queria partir mas julgou estar a forçar o momento. O doutor mantivera-se calado por mais de cinco minutos. À mulher pareceu justo que fosse sua a iniciativa de partir. A música parecia terminar e, a voz, era uma voz difícil de recordar no ouvido da memória.

- Adriana, disse?

- Adriana Calcanhoto. Brasileira.

- Muito obrigada pela água.

- De nada. Já sabe, beba sempre devagar...

- E agradeço antes de morrer!

O doutor quase sorriu. Os lábios contorceram-se; apenasmente uma tentação de sorriso. Talvez, só talvez.

O portão foi aberto. A mulher, pegando propositadamente nas grades reconheceu a sensação daquela frieza na pele.

- Sabe, foi num domingo. Fui chamado à frente de combate e ninguém queria operar o homem: tinha uma espécie de explosivo preso à perna. Era uma operação muito delicada, ainda hoje penso nisso, não deve ter sido coragem... Tive que fazer tudo muito devagar, enquanto o homem sofria com as dores, e ambos tínhamos que ser pacientes. Quase no fim, o soldado disse-me: deixa-me morrer, tou muito cansado já. Eu respondi: já te deixo morrer, mas deixa-me salvar-te primeiro.

- Ele morreu?

- Não. A operação correu bem. Ele, no fim, quis dar-me uma prenda. E não tinha nada. Descalçou a bota e disse: agora já sei porquê que a filha da puta desta pedra anda a me incomodar há dois dias. Toma lá, doutor, só pra não esquecermos esta nossa conversa de hoje. Você ficas com a pedra, eu fico com a cicatriz.

O portão fechou-se. A sede tinha passado. A mulher foi caminhando lentamente pelo passeio. Ouviu passos e a música recomeçou. “Minha música quer estar além do gosto, não quer ter rosto, não quer ser cultura.

Entre duas folhas acastanhadas - numa janela de poeira - a mulher viu: a libélula, parada, ondululava o corpo. Fosse uma dança. Sob as suas patas, a pedra brutalmente vulgar repousava - entre a memória do homem e a redoma inquebrantável de vidro.

Gente, pela primeira vez neste blog, publico um texto que não é escrito por minhas percepções. Porém, esse texto tem muito a ver com o que eu sinto no cotidiano e com a minha vontade de escrever bem! É o texto que eu queria muito ter escrito. Este texto foi retirado do site Bestiário - revista de contos. Abaixo uma breve biografia do autor.

ONDJAKI nasceu em Luanda, em 1977. Interessa-se pela interpretação teatral e pela pintura (duas exposições individuais, em Angola e no Brasil). Já em Lisboa, fez teatro amador durante dois anos e um curso profissional de interpretação teatral. No ano 2000 recebeu uma menção honrosa no prémio António Jacinto (Angola) pelo livro de poesia actu sanguíneu. Participou em antologias internacionais (Brasil e Uruguai) e também numa antologia portuguesa. É membro da União dos Escritores Angolanos. É licenciado em Sociologia. Publicou "Actu Sanguíneu" (poesia, 200), "Momentos de aqui", (contos, 2001), "O Assobiador" (novela, 2002), "Há Prendisajens com o Xão" (poesia, 2003), "Bom Dia Camaradas" (romance, 2003), "Ynari, a menina das cinco tranças" (infanto-juvenil, 2003) e "Quantas Madrugadas Tem a Noite" (romance, 2004).

6 de julho de 2006

Conversão*


Na hora que ele chegou antecipou o grito do outro que não hesitava em disseminar tal felicidade. O outro, parte pressuposta do que o espera, completou apenas em luz um sentimento que conseguia decifrar. O Outro chegou. E foi neste exato momento que nada fora do comum aconteceu, mas que o mundo se transformava meticulosamente. Acrescia-se ao ambiente um sorriso nunca dantes elaborado por um ser pensante. O Outro, estático e enaltecido, estava a aceitar fulgores de um instante simples capaz de reestruturar solidificações. Ele, parado e em pé, estava pingando gotas que escorria delicadas pelos cabelos não tão longos assim. Aproveitou para, em frações prolongadas de milímetros de segundos, abrir a boca de forma sensível, revelar em símbolo sua dentição e, como se fizesse para provocar, passou sensualmente a língua nos lábios. Apenas a genuína vontade de umidecer os lábios. Pronto! O sinal estava posto! Ele, que o esperava, era utopia avassaladora. E quem queria saber do toque? A espera em si liquida a ferocidade do instinto do desejo e o transofrma em irracionalidades. Ele não estava livre.


"Imagina
Imagina
Hoje à noite
A gente se peder
Imagina
Imagina
Hoje à noite
A lua se apagar

(...)

Sabe que o menino que passar debaixo do arco-íris vira moça, vira
A menina que cruzar de volta o arco-íris rapidinho vira volta a ser rapaz
A menina que passou no arco era o
Menino que passou no arco
E vai virar menina
Imagina
Imagina
Imagina"**


Foi-se ilusória e concisamente instaurada a perfeita atmosfera. Atraia comentários audaciosos. Maquinário de construção da idéia e imagem de um outrem que passa próximo. Aquele espaço para eles era o lugar dele e do outro que chegou. Apenas isso e nada mais. Pelo menos por enquanto. Durasse o tempo que fosse necessário. Pois da natureza da relevância tudo tomava conta dos pensamentos. Risos, aliás, gargalhadas. Contidas em apenas o derretimento de um olhar quase desviante. Mas ele estava alí, voltara. O outro o estava a esperar, movimento. Um caminhando lentamente (o instante comum passava-se o tempo sem pestanejar - porém o tempo deles era concreto e diferente dos demais). Ele apareceu para distrair a atenção que um outro tinha da reflexão justa e necessária que o tirava da liquidez e do desânimo. Acertou-se consigo que, como um leão deve fazer ao roçar sua limpa juba nas costas da sua leoa tão feroz quanto afável, amar era um passo delicado e gentil a outro momento imprescinível para a potencialidade de sua inteligência ainda imatura. É muito bom lembrar que não tinha música. Aliás naquele momento era inútil pensar nisso. Nem existia possibilidade de imagem e de som ao redor dele que chegara e dele que o esperava. Movimento.


"
Diz quem é maior que o amor?

Me abraça forte agora, que é chegada a nossa hora
Vem, vamos além. Vão dizer
que a vida é passageira
Sem notar que a nossa estrela
vai cair"***


Chegou perto, olhou nos olhos (quando podia) e diálogo:


Ele (que esperava) - Do seu olhar, a limpeza que abstraio é a revelação de que um senhor de sentimentos apavora a coragem às avessas que impede de a felicidade ser experimentada em qualquer instante. Mas ainda não consigo conceber a dimensão que isso pode nos limitar e até esmaecer. Podemos provocar então outro signo rítmico?


Outro (que chegou) - A ansiedade dos poros é estarem abertos para sentirem com, cada vez mais nitidez, a proeza de alcançar um outro estágio das sensações. E isso nunca pode ser limitador. É consequência. E, mais do que isso simplesmente, é antecipar o gozo. Racionalizar a possibilidade de sentir. Mas pode parar por aqui e afeto do olhar continuar a sucumbir nossos espíritos luxuriosos.


Ele (que esperava) - Absolutamente espontâneo. Deve-se ter cuidado com as intemperes do caminho. Socorrer as vicissitudes e alimentar a vontade duradoura. E se a gente puder deslizar a imensidão e varrer outros lares? Acho que está na hora!


Longo e sonoro beijo.


Mas eram apenas pensamentos de desejo. Verdade pouco existia de fato. Aliás faltava-lhe fatos. Imaginação. Imagem na ação. Do que o pensar iria construir e ação apenas aqui. De fato? O outro que chegou levantou-se, pediu parada e deixou aquele ambiente vazio. Ele apenas acompanhoou com olhares ferozes. Bicho que é. Mas outro chegou. Não lhe interessava mais aquele jogo. Concordou apenas com Vinícius de Moraes. Balbuciou soneto.


"De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zêlo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e darramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contetentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, pôsto que e chama
Mas que seja infinito enquanto dure"****



Foto: Vânia Medeiros



* Uma conversa um pouco maior para deleite dos apreciadores literatos e desprezo dos outros tantos. Limitação do autor: Falta de concisão e talvez um pouco de sensatez.

** Trechos da música Imagina de Chico Buarque e Tom Jobim

*** Trecho da música Conversa de Botas Batidas de Marcelo Camelo

**** Soneto de Fidelidade de Vinícius de Moraes