3 de março de 2015

Jogo de cena


Na primeira cena, ele sentou na calçada respirando de forma ofegante. Culpa dos passos rápidos que precisou dar até chegar alí. Estava correndo mesmo, e até um pouco assustado com tudo aquilo, até por ter clareza do que se intermediava alí entre a emoção e o desatino. Tudo parece confuso, mas na verdade, como cena, ele estava mais uma vez interpretando personagem já conhecido pela platéia. Um robusto teor de naturalidade saía de suas expressões, envolto nessa realidade fantasiosa fruto também das escolhas que fazia nesse tom dramático. Engraçado que o tablado se constituia de seu próprio corpo em solavanco, nada de um palco em confete, já que o cenário era tão cru que mais parecia a cidade ao redor. Tinha que seguir o roteiro, estava alí marcado: no batente de uma rua qualquer ele chora por não conseguir fugir dele mesmo, ainda que tivesse corrido léguas tentando extirpar de si o demônio mais sofrível que era sua própria constatação de fracasso em ser/estar. Nos ensaios, fez tudo diferente, se via belo e capaz até mesmo de conquistar o desejo de outrem, mas no final de contas, tinha mesmo era que seguir o script.

Mesmo com sol, tinha chuva. E ele não experimentava mais nada além do seu próprio jeito inquieto de viver sozinho. Estava em um longo exercício do atuar que se chama exaustão. Repetindo o mesmo gesto, corroborando com o mesmo argumento até entranhar de forma persuasiva no corpo como reação comum do outro que se valhe do seu corpo para ter vida. Era muito trabalho - físico até - e muita leitura para se aprofundar nessa conquista de ser o que não queria e convencer xs espectadorxs.

Todos os subterfúgios foram usados, desde lágrimas secas, até mesmo o rosto maltratado, cabelo não cortado (o personagem precisa ser ainda mais feio e acabado), olhar perdido para o mundo, entonação de voz que insinue uma fraqueza de espírito e falta de iniciativa. No palco, ainda tinha uma luz bem fraca, daquelas que a silhueta parece ter vergonha do objeto que está em cena. O som, uma captação de ruídos do ambiente da rua, tão nítido que as buzinas do carro assustavam-no de vez em quando. O grande problema daquele palco era a ausência da coxia, motivo pelo qual ele nunca podia sair do personagem, mesmo sem plateia. 

E então, quando na inteireza do sentimento do outro - que é ele, deu o texto, que mais parece um bordão: "sentado nesse pedaço de chão, no abismo da ilusão de estar em qualquer lugar que não em desejo, posso dizer que agora mais do que nunca, e como sempre (por qualquer tal incompetência que seja) - estou sozinho! 

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