30 de outubro de 2006

Uma de Rodoviária*


...

Cheguei de manhã bem cedo na rodoviária de Jequié depois de ter viajado a madrugada toda. Fazia frio, eu só tinha um casaquinho fino para me cobrir. Tinha que esperar a pessoa que ia me levar dali pra Lafaiete Coutinho, cidade vizinha e meu real destino, e àquela hora da amanhã, com certeza ela não havia acordado. Resolvi tomar um café quente com pão na lanchonete.

Comi devagar, em pé no balcão. Depois de pagar fui me sentar numa das mesas. Estava com um sono forte, tirei meu travesseirinho da viagem da mochila e recostei sobre a mesa. Dei uma cochilada meio que ouvindo a conversa de dois homens que estavam na mesa do lado, uma conversa meio doida. Um deles falava de Deus e o outro dizia que era cantor.

Levantei, fui ao benheiro (paguei 0,50 centavos), fiz xixi, escovei meus dentes e voltei, ainda sonolenta, pra a mesa. Puxei um livro e comecei a ler.

(Faz vários barulhos na rodoviária, mesmo a essa hora da manhã. Toca uma música brega na caixa de som, o rapaz da lanchonete grita pra outro "ô rapáz, de manhã cedo você já tá perturbano!")

Na mesa ao lado, o que diz que é cantor conversa agora com outro homem, que parece um velho conhecido seu. Me virei pra eles e vejo bem a figura: é um velho negro alto, com vários dentes faltando, um dos pés enfaixados, usa uma bengala. A expressão dele é o tempo todo meio sorridente, um sorriso meio besta.

O outro, tão velho e acabado quanto ele, só que branco, tira de uma bolsa velha uma garrafa de coca-cola sem rótulo, com um líquido verde dentro e mostra ao outro, que a segura e olha muito, parece bastante interessado...

Eu não ouço bem o que eles dizem por que estou lendo e meu interesse está dividido entre os dois e o livro.

O pé enfaixado pára de falar e fica me olhando. Deduzo logo que ele vai falar comigo.

- Moça, você é serva de Deus?
- Er... oi... hein? Ah, sou sim senhor - digo, mal tirando o olho do livro para mostrar desinteresse. Ah, não quero conversa.
- Não é malandragem não, mas a senhora parece uma santa. A senhora se chama Ana?
- Não...
- Como é seu nome?
- Vânia.
- Ói, Eu tenho essa úlcera no pé há seis anos. Já vendi tudo o que tinha por causa disso, açougue, carro... nunca resolveu. Agora me aparece o remédio certo (ele mostra o líquido verde) e eu não tenho dinheiro pra pagar. Eu fui roubado ontem, me levaram dez cds... a senhora não poderia...
- Moço, não posso comprar, estou sem miúdo, estou aqui a trabalho... desculpe.
- Tá aqui a trabalho, é?
- Huhum.
- A senhora está indo pra Salvador ou pra Itabuna?
- Lafaiete Coutinho.
- Ah. Eu vivia correndo atrás de gado lá. Eu sou cantor. A senhora escreve poesia?
- Não senhor.
- Apois, olhe aqui.
Ele tira um papel plastificado da sacola rota e me dá pra ler. É um registro de cartório, de uma música. Chama-se "O amor de Ana é vaidosa".
- Olha, que bom! Parabéns (o que mais eu poderia dizer?)
- E olha aqui, tá tudo registrado aqui... - e tira um CD da bolsa, gravado, escrito à mão "Antônio Alexandre".

O outro se dirige pela primeira vez a mim e diz:
- Esse ai é serio, moça. Ai não é de bater papo não. Não é malandro não. A senhora não quer comprar ai a fita dele pra ajudar não?
- Ô moço, agora eu não posso.

- Esse livro que a senhora está lendo ai é o quê? - diz o cantor.
- Ah... é a história de uma moça.
- Sim, mas o que é que tem?
- É uma moça que se veste de cavaleiro, no passado.
- Ah, sim. Apois eu mesmo é que gosto de escrever as história.

Ele fala com um cigarro pendurado no canto da boca o tempo todo, fuma um atrás do outro. Continua, segurando o CD:

- Aqui, ó, se botar em qualquer rádio ai, ó, sai a história. Você mesma deveria escrever suas história invês de ficar lendo ai as história dos outros. Devia escrever "eu cheguei aqui em Jequié, não encontrei condução, cochilei na mesa..... e começa a olhar pra a rua, parece que esquece de mim, com o cigarro na boca.
- Mmmm. certo... quem sabe eu escrevo....

Ilustração: "Morro da Favela" de Tarsila do Amaral

* Texto de Vânia Medeiros

5 comentários:

N. disse...

A observação simples e simbólica do cotidiano, marca desse texto de Vânia, é sempre uma excelência. De repente o banal se torna descrição metafórica e cheia de sentidos.

Espero que tenham gostado desse texto.

E Van, por favor, permaneça obedecendo sempre aos mais velhos!

beijos

Anônimo disse...

Ela escreve leve...

E colorido.

f.

Anônimo disse...

nhaaaaagghfdaBKJyqoebjawD!

Cristiano Contreiras disse...

Niltim,
seu estilo é preciso, me agrada - uma mistura de cotidiano, reflexão íntima e objetividade.

Boas também as suas imagens,
voltarei mais.

Abraços, conterrâneo.

Leo Coutinho disse...

Gostei muito daqui. Esse texto é incrível Vânia! parabéns... voltarei