4 de agosto de 2009

Noturnas


Chegava não muito tarde de suas caminhadas noturnas. Alegrava-se em balbuciar sons solitariamente enquanto apreciava as literaturas que as ruas a inspirava. O argumento mais profundo que construia sobre continuar a andar baseava-se nos aromas agridoces das calçadas - o cheiro do azeite de dendê que queima com cebola próximo ao carrinho de pipoca na frente da escola denuncia as argurias que ela sentia na sua boa andada noturna. Mas não atentava muito para os detalhes essa mulher saída da adolescência, bem possível que ela nunca realmente tenha reparado muito para os detalhes, nunca fora tão caprichosa assim. Fazia boas articulações de pensamento, com boa memória chegava até impressionar, mas sua falta de atenção não permitia que passasse da média nove. Optava pela sorte, diria sem pestanejar seguida de uma gargalhada sozinha.

Exitava em chamar atenção, por isso planejava cada passo tão obstinadamente que parecia calculado até os sentimentos que deveria ter, como se pudesse supor aquilo que teria de emoção. Também deixava de ser sociável já que tinha facilidade em saber do outro e como estava quase sempre em posição de meio-termo era fixada por poucos.

Mas chegava o momento. De repente chovia por demais antes de chegar em casa. As árvores deixavam pingos caírem aos montes e com força sobre sua cabeça ao mesmo tempo que a protegia da queda torrencial de águas do céu. Continuava no meio-termo, se escondia com os pingos grossos e as vezes se molhava pra chegar mais rápido ao destino. Tinha o caminho traçado por sua mente enquanto a chuva dava tréguas aos andantes. Livrou-se das obsessões trazendo fone de ouvido às orelhas já molhadas. Parou para ver o tempo passar na garoa. Era bonito de se ver os carros adiantando seus percursos, as mulheres aos braços com seus companheiros, as crianças nas varandas das casas.

Os outros dois seguiam correndo para melhorar a forma física. Cogitavam parar em uma barraquinha na ponta da rua com intuito de refrescar-se mesmo depois de receber águas enquanto conversam de diversos assuntos. Sabiam pouco um do outro, mesmo com muito tempo de companherismo de corridas noturnas. Ela os via vindo e entendia que não se supunha visível, mesmo assim tratou de observá-los. Perto dela, um deles precisava amarrar o tênis e de sobressalto tinha pedido um tempo para o companheiro.

Em um instante ela pensou em filhos. Seria possível alguém amar assim tão repentinamente? Uma paixão avassaladora, algo que atropela o peito. Ela sabia que tinha alí um desejo muito forte por construir a coletividade da vida com outro e isso estava palpitando nas suas veias. Era ele. Tinha encontrado alguém que lhe tomaria a alma e que construiria todos os sentidos das cores que seus olhos iam misturando em ação. Suas poucas mentiras já não importaria, já que ela já o tinha em verdade. Sabia que o chamaria de amor na frente de seus amigos mais próximos e seus pais assumiriam que ela era mulher feita. Ele retribuiria com supresas em dias de trabalho, recados de carinho e afetos saudosos. Ela o tinha em compaixão e mistério. Já tinha o amor.

Ele não descuidou dos dois cadarços. Estava pronto para voltar a correr. O outro voltou a puxar qualquer assunto, deram risadas contidas e continuaram a correr. Ela não tinha ainda escolhido qual dos dois amara naquele momento. Eles já iam longe, quando ela decidiu assumir a chuva e foi ouvindo música pelas ruas à procura de um amor. Ela e sua sinuosidade distorcida sob as águas.

*A regurgitar Clarice Lispector e sua via-crucis do corpo

Um comentário:

Davi B. disse...

banhos de chuva são sempre revigorantes. A vida parece tão mais simples...