31 de maio de 2009

Por que era ela, por que era eu*


Muito pelo contrário. Tinha rasgado as desventuras da misericórdia. Alegara-se injustiçada pelo tempo e pelo tamanho adquirido da extensão espacial, se é que vocês me entendem bem. Ela não era simples, sabia, mas quem o dissesse de sua complexidade é por que não havia sequer chegado perto de suas intenções na vida. - As intenções que você tem no caminho, as suas intenções são muito sérias. Nada de planejar o destemido, tenha retidão no seu pensar e só isso lhe fará honesta com suas habilidades. Dizia a ela seu pensamento. E não vem ao caso discutir as habilidades dela, basta pensar que ela tinha rigor de viver e que não tem nada de abstrato nisso. Que história de veranear nas areias da praia macia. Ela queria mesmo era não esperar mais pelo coração acelerado e assistir de camarote o que construia aos poucos, o cotidiano, a prática da vida comum, mesmo que sentisse pulsar de felicidades momentâneas lhe convidando. Então, assistia televisão sem nem ao menos saber do que se tratava... chamava atenção as cores que tinha naquelas luzes velozes. E aqui tem um sentido de aparecer a televisão, por que ela construiu uma em casa com uma tábua de passar roupas bem antiga que não servia mais (não tinha roupas de algodão para desamassar). Também tinha uma lanterna, papel celofane, barulho de rádio relógio. Pornto! Faltava uma coisa: gente. Mas esse era difícil saber entender sua engenharia, então guardou o invento incompleto para quando soubesse todos seus "ingredientes". Ria sem parar das bobeiras que pensava.

Tinha paciência com crianças, de vez em quando. Só não gostava quando o comportamento delas era de gente que se sabia ingênuo demais. Ficava sem graça como brincadeira muito longa. Quando liguei pra ela, estava se arrumando para ir à praça brincar com algum infanto que estivesse por lá. Aí eu disse a ela que não tinha sentido e ela optou por me ouvir. - Se quiser ler o mundo enfrente meus medos, eles são muito parecidos com os seus, Nélia. E não dê risada tentando satirizar minha emoção, não vai servir de medida escapatória. Disse eu mesmo sem rigozijo, talvez temente dos pensamentos do outro lado. Nélia me disse que leu duas páginas de um livro que tinha guardado no armário de roupas, mas que estava meio sempaciência para poesias absurdas. Disse-me também que a diversão do seu domingo era fazer machucador de alho um microfone com sabor para adoçar canções que ela mesmo ia compondo com o eco da cozinha. - Se eu tivesse sabedoria de minha passagem pela alegria difusa ou pela minha oração, eu seria cantora, sabia? Me disse ela, também me acalmando.

Escreveu umas duas vezes no espaço virtual que seu filme preferido da nova geração era Madame Satã por que a liberdade estava alí posta na casa fúnebre e sexual da periferia do Rio de Janeiro em tempos atrás. Aquilo soava como jogo de sinal, quase que por acaso comentava rapidamente que gostava mesmo era do sorriso de Selton a qualquer momento. Recebeu treze comentários sobre isso que escreveu e quando lembrava ficava tensa pois não sabia se tinha verdade alí ou a necessidade de dizer qualquer coisa que viera a mente. Quando casnava de pensar, pensava mais ainda e isso era prerrogativa de sua paixão pelo universo de construção de sentido. Por acaso leu o jornal de sábado, pois não tinha o costume já que com o salário de secretária de médico homeopata mal dava para tomar a cerveja no domingo que, segundo ela, aliviava a tensão. No fundo, queria mesmo era saber do silêncio das coisas influenciada pelo que lera sobre um senhor chamado Smetak quando dizia que o sentido do som estava no silêncio depois que ele acontecia. Se ela fosse música, o que seria depois que ela fosse tocada?

Por sorte sobrara uns trocados para comer um daqueles congelados de supermercado. Era sempre uma alegria ter massa com verdura pronta para ser devorada com um suco de polpa de umbú. Em direção ao caixa achava que alguém deveria fazer fotografias daquele momento, cores e ilusões de ótica não faltariam para compor. Quando lembrei do trecho da música que tinha lhe dito antes ela já tinha saído de casa, como não tinha secretaria eletrônica não lhe pude deixar recado. Eu fico bastante envergonhado de ligar para seu celular, então guardei o trecho pra mim como se ela fosse pra mim nesse instante o silêncio promissor, esperançoso. Em outro momento pra mim, Nélia era o silêncio e só.

Imagem: Nina Neves
*Música de Chico Buarque, também tema do filme A Máquina.

Acho importante falar que os diálogos dentro da sequência do texto, anunciado com travessões devem ser visto como um elemento qualquer da narrativa. Minha proposta era dar velociadade ao texto, mas ao mesmo tempo penso que pode dar margem à qualquer interpretação de sentido. Que bom!

2 comentários:

Franklin Marques disse...

Algo me fez parecer entender que a simplicidade estaria extamente no movimento que você deu ao texto. Do tempo retirado de sua sequencia arbitrariamente cronológica...

Anônimo disse...

Fantástico! Fui comendo comendo comendo...Que ritmo!