5 de abril de 2006

dois ... são dois!


Eles estavam sentados. Um de frente para o outro. Assim, sentados, olhando para o outro. Um deles, apoiado sobre a mesa, alisava tranqüilamente o cotovelo. Na verdade estava com os nervos à flor da pele. Estava pensando que o rosto perfeito, a boca perfeita, o nariz bem feito, a cor da pele, atraia-o com paciência. Isso que era canção, pensou sem dizer uma palavra. Aliás, seu pensamento eram só palavras. Devagar, conseguiu balbuciar algo que fizesse com que o outro levante “vagarmente” o rosto com olhar cansado, mas sincero. Foi contemplação naquele momento, idealizações! Eram naquele momento protagonistas em um não-conto de fadas. Estavam sensíveis ao toque. Roubou-lhe sorriso, pensamentos equivocados, expressões de compreensão e paciência. Foi-se formado um pacto ao som suave do samba, que controlava o ritmo do pandeiro como se fosse a disritmia do coração. Havia uma grande possibilidade de complementação de si no outro. Quem estava de cabeça baixa na mesa e levantou o rosto de forma singela aproveitou o ensejo para dizer-lhe de forma delicada:

“Sou seu Colombo, seu coração
Sou seu canário, eu sou seu dragão
Sou seu São Jorge, seu mau freguês
Sou seu vampiro, seu amor cortês
Eu sou seu Hitler, seu Peter Pan
Seu João Batista, eu sou seu Tarzan
Sou seu palhaço, seu urubu
Seu cavalheiro, seu Danúbio Azul
Sou seu maestro, seu Frankeinstein
Sou seu boneco, eu sou seu nenem
Seu mascarado, sou seu Romeo
Seu labirinto, eu sou seu Teseu
Sou seu”*


Entregaram-se desde então. Aprenderam a se admirar pelo mínimo que os unia. Eram ricos dessas coisas de se acharem infantis. Passavam maior parte do tempo a brincar. Com as pernas, com o umbigo, de lavar pratos, de escolher o canal da televisão, de chegar a conclusão de qual música de Chico seriam a música deles. Ás vezes eles eram ridículos sim, mas eram crianças. Se entregaram de deitar no colo, de receber telefonemas no meio da tarde apenas de saudade. Para dançar bastava um disco de Ceumar tocando a mais bela das cirandas. Dançavam até a exaustão. Era um baile. Quando a exaustão chegava, os corpos suados estavam debruçados sobre o outro. Um cantarolava, em um microfone improvisado com as mãos, mais canções de paixão. Os olhos cansados adormeciam lentamente. Mas ele lembrou de uma coisa muito importante pra dizer enquanto voltava lentamente a dançar:


Sou sua luz
Sou sua cruz
Sou sua flor
Sou sua jura
Sou sua cura
Pro mal do amor
Sou sua meia
Sou sua sereia
Cheia de sol
Sou sua lua
Sua carne crua
Sobre o lençol
Sou sua Amélia
Sou sua Ofélia
Sou sua foz
Sou sua fonte
Sou sua ponte
pro além de nós
Sou sua chita
Sua criptonita
Sou sua Lois
Sou sua Jóia
Sou sua Nóia
Sua outra voz
Sou sua
Sou sua
Sou sua
Plenamente
Simplesmente”**


Então era margarida que coloria o cheiro que, agora, o ar desprendia. Um aroma excelente, sem preocupações maiores. Continuavam dançando. “Fechando e abrindo a noite inteira”***. Tinha alguma fome conveniente? Não havia resposta até o sol raiar. Maliciosos, carentes, afáveis. Beliscavam petiscos até o sol raiar. Um escutou baixinho no ouvido:

"Menino, amanhã de manhã
Quando acordar
Quero te dizer que a felicidade vai
desabar sobre os homens, vai
desabar sobre os homens, vai
desabar sobre os homens

(...)

Menino a felicidade
é cheia de an
é cheia de en
é cheia de in
é cheia de on

Menino a felicidade
é cheia de a
é cheia de e
é cheia de i
é cheia de o"****


lustração :: Vânia Medeiros

* Música Intimidade de Adriana Calcanhotto
** Música Sou sua de Adriana Calcanhotto
*** Trecho da música Preciso dizer que te amo de Dé, Bebel e Cazuza
**** Trechos adaptados da música
Menina, amanhã de manhã de Tom Zé

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